António Costa e o Ford modelo T

Para o PS, não basta que tenhamos regredido dez anos – é preciso fingir que regredimos 100.

Na entrevista que António Costa concedeu ao PÚBLICO, houve um infeliz momento de revisionismo histórico, ao qual não foi dado a devida atenção.

A certa altura, ao ser questionado acerca do problema da dívida privada, o líder do PS decidiu invocar o pensamento de Henry Ford: “Esta crise começou quando o capitalismo deixou de assentar numa ideia fundamental do senhor Ford: era necessário pagar a cada um dos seus operários o ordenado suficiente para que eles pudessem comprar os carros que ele produzia. E a partir do momento em que se considerou que não era necessário pagar a um operário o necessário para ele comprar os carros, não se deixou de fazer carros, a mudança foi dizer basta-me pagar o suficiente para ele pagar a prestação do crédito que pediu para comprar o carro.”

Ora, uma coisa é António Costa não se querer comprometer com as soluções que tem para o país, porque acha que ainda não é altura para isso – outra, muito diferente, é andar a sulfatar os jornais com uma demagogia ao nível do jardim-escola. Esta sua análise do problema da dívida privada, em que se insinua que o mundo era um lugar mais decente e justo em 1915 e se sugere que convém aumentar ordenados independentemente da produtividade que eles geram, é patética. Poderia ficar excelentemente na Quadratura do Círculo, mas é inadmissível na boca de um candidato a primeiro-ministro.

Em primeiro lugar, quando, em meados dos anos 1910, o senhor Ford decidiu aumentar o salário dos seus trabalhadores qualificados para cinco dólares por dia, duplicando o ordenado médio da empresa, não o fez com o objectivo de passarem a comprar os seus carros – fê-lo para conseguir manter os melhores mecânicos na Ford, já que, devido às duras condições das linhas de montagem do modelo T, o número de abandonos do posto de trabalho era gigantesco, o que provocava cortes constantes na produção. Em segundo lugar, uma parte significativa desse salário era um bónus – só o recebiam os trabalhadores que dessem provas de viver de acordo com os standards da boa família americana, existindo para tal um departamento na Ford que fazia visitas regulares a casa dos empregados, para fiscalizar o seu comportamento. Em terceiro lugar, apesar do papel de Henry Ford na melhoria das condições de vida dos seus operários, a verdade é que o PIB per capita dos Estados Unidos sextuplicou no último século, e qualquer trabalhador da actual indústria automóvel, mesmo no meio da crise, vive hoje infinitamente melhor do que há 100 anos.

Isto não é um pormenor de somenos, nem um exemplo meramente infeliz de António Costa. Muito boa gente à esquerda anda entretida a reescrever a História e a manipular a memória, querendo convencer-nos de que houve um tempo em que a vida era bastante mais fácil e o capitalismo um sistema muito amigo do trabalhador. Em vez de se prometerem amanhãs que cantam, inventam-se ontens que cantaram. Se Costa quisesse combater com firmeza a desigualdade e o capitalismo de compadrio, eu estaria com ele – essas são, sem dúvida, lutas fundamentais do nosso tempo. Mas o problema é que, em simultâneo, a agenda socialista continua a promover uma absurda narrativa da crise, em que o trabalhador de 2015 até já perde em privilégios para o trabalhador de 1915. Para o PS, não basta que tenhamos regredido dez anos – é preciso fingir que regredimos 100. Não basta tentar corrigir a realidade que existe – é preciso inventar uma realidade que nunca existiu. Caro António Costa: assim não dá.  

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