António Cluny: “Temos de ultrapassar a lógica de que só os direitos sociais são onerosos”

António Cluny defende que a corrupção se combate com a análise prévia dos negócios e dos contratos de todos os níveis do Estado. E defende que em causa não pode estar só o problema “do lícito ou do ilícito”, é preciso ter em atenção a bondade ou maldade ou malefícios de determinadas orientações políticas”. Como caminho propõe que seja adaptada para toda os negócios do Estado a lei que submete a visto prévio os contratos do poder local.

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Nuno Ferreira Santos

Depois de mais de 12 anos a desempenhar as funções de representante do Ministério Público no Tribunal de Contas, António Cluny diz que não deve haver “um discurso aparentemente moralista sobre a corrupção” e considera que os negócios de Estado não podem ser vistos apenas pela “sua legalidade estrita”, antes deve ser tida em conta a “sua utilidade social” e o respeito pelo “bem-comum” das opções ideológicas de governação. Magistrado há 37 anos e hoje com 58 anos, Cluny diz que tem de haver quem verifique e “se daí resultar o contrário do que se previa, então alguém tem de ser responsabilizado”. E defende que devia ter sido avaliado se “havia sectores privatizados que poderiam ter contribuído mais para o desenvolvimento da economia nacional permanecendo no Estado” do que privatizados.

Concorda com a intenção reafirmada pela ministra da Justiça de criminalizar o enriquecimento ilícito?
Penso que é uma ideia positiva. Saber se esse controlo deve fazer-se essencialmente ou preferencialmente pela via da punição, é uma questão que teremos de discutir. A minha experiência no Tribunal de Contas é de que mais importante do que a punição e a repressão – sem retirar que são importantes – é construir um sistema de controlo de utilização dos dinheiros públicos, que permita evitar que as situações se concretizem. Porque, depois delas se concretizarem, podemos ter a satisfação moral de punir quem prevaricou, mas já é mais difícil compensar o erário público, os cidadãos, do dinheiro que resulta desses actos. Apostar bastante nos mecanismos de controlo dos fundos públicos é para mim a ideia mais importante.

Defende que propostas de mecanismos de controlo?
O Tribunal de Contas funciona em dois níveis, um de controlo prévio e outro de sucessivo. O controlo sucessivo tem exactamente o mesmo problema da punição, quando se verifica já os factos se deram. O prévio teria a obrigação de ser mais eficaz. Acontece que o tipo de controlo prévio que aqui se faz, através do visto prévio, é essencialmente baseado na verificação da legalidade estrita da despesa. E é só da despesa. Podíamos começar a pensar nesse controlo também para a área da receita. Estou a referir-me, por exemplo a actos que têm a ver com privatizações, com contratos em que não há propriamente uma despesa pública.

As privatizações são controladas pelo Tribunal de Contas.
A posteriori. O que em meu entender era importante era que o controlo pudesse ser feito essencialmente não apenas pela legalidade estrita dos contratos mas também sobre a sua economicidade, a sua eficiência económica, como já acontece de alguma maneira na lei recentemente aprovada relativa às empresas municipais, a lei que aprova o regime jurídico da actividade empresarial local. Pela primeira vez, o visto prévio aponta já para a análise da eficiência e da economicidade dos contratos. Mas estamos apenas neste âmbito, quando seria importante e interessante que este controlo passasse a ser alargado à administração central e ao sector empresarial do Estado. Tem que haver uma evolução que passe da verificação apenas legal dos contratos, que muitas vezes não revela nada ou revela pouco, para um controlo da qualidade quer da despesa quer da receita.

No caso das privatizações defende exactamente que mecanismos? Ter uma entidade que acompanhasse a escolha dos consultores?
A própria operação, a utilidade e vantagem da operação, a economicidade da operação.

Muito a montante.
Sim. O que dali vai resultar, qual a vantagem.

O Governo antes de decidir tinha de consultar.
Não é a questão do Governo decidir. Há uma margem de decisão política alargada que deve manter-se, agora deve haver um parecer prévio de uma entidade que dissesse da vantagem do negócio tal como está a ser concebido. Aquilo que o Tribunal está a fazer agora, a posteriori, poderia ser mais eficiente e até do ponto de vista da opinião pública mais claro, se pudesse ser feito antes. Não quer dizer que o Tribunal pudesse recusar a operação. Mas o simples facto de emitir um parecer num sentido ou noutro poderia ser importante para uma responsabilização a posteriori, caso o parecer não tivesse sido acatado. Garantia uma maior segurança a quem tem de decidir. E a margem de decisão política era mantida.

Concorda que deve desaparecer o sigilo bancário?
Há muito tempo que não compreendo porque é que existe sigilo bancário, nomeadamente quando se trata de investigações. Hoje ele está bastante mais moderado na nossa legislação, as autoridades judiciárias têm possibilidade de aceder a dados bancários. Mas a própria ideia de sigilo bancário destina-se a resguardar o quê? A pergunta tem que ser colocada. É a privacidade dos negócios? Bom, eu reconheço que possa haver necessidade de sigilo bancário em termos de o meu vizinho não ter de saber exactamente o que ando a fazer, se o meu pai me dá dinheiro, se o meu filho precisou de dinheiro, admito isso perfeitamente. Agora uma coisa é o conhecimento pessoal, privado, outra coisa é a possibilidade de qualquer entidade pública que necessite fazer o controlo a qualquer nível, ter acesso. Claro que tinha de ser acompanhado certamente de uma punição de quem abusasse do conhecimento de um determinado tipo de dados.

É um observador externo no Tribunal de Contas que é um local de observação privilegiada. Concorda com a tese de que em momento de crise há mais enriquecimento ilícito e mais corrupção?
O enriquecimento ilícito é uma presunção de não conhecimento da origem do dinheiro. Na corrupção temos de saber distinguir o crime tal como está definido no Código de Direito Penal e a concepção social da corrupção e a concepção que a sociedade tem da corrupção, que são coisas diferentes. Há uma concepção em geral na nossa sociedade, uma falta de transparência da utilização de dinheiros públicos e da aquisição de riqueza em função da interpenetração do sector público e privado. Existe essa consciência, existe a ideia de que essa ligação muito estreita entre sector público e privado não é transparente, não é clara, favorece pessoas, negócios, entidades. É evidente que, através de alguns casos que têm sido revelados por investigações criminais, por relatórios do Tribunal de Contas e até pela comunicação social, ficamos com a ideia de que as coisas nem sempre correm da melhor maneira e são efectivamente pouco transparentes.

E que análise faz?
Temos de ter uma percepção clara. Os sistemas judiciais têm a possibilidade de intervir que têm, quase sempre a posteriori, quando as coisas já ocorreram. Eu considero também que não podemos desviar toda a análise política de um determinado sistema e de uma determinada situação apenas para a área do Direito. Há um discurso por vezes sobre a corrupção - no sentido social do termo e não no sentido técnico-criminal – que quer esconder que há de facto linhas de orientação política que apontam para determinado sentido, tem determinadas consequências e não são assumidas claramente. Não acho mal que as pessoas assumam claramente, por exemplo, o modelo de privatização total da sociedade. Posso é estar de acordo ou não com ele.

Considera que há orientações políticas que podem favorecer a corrupção?
Não. Quero dizer que o discurso sobre a corrupção muitas vezes serve para escamotear opções políticas que até podem ser legítimas. Não podemos centrar-nos só sobre o problema do lícito ou do ilícito, temos de nos centrar também sobre a bondade ou maldade, ou malefícios de determinadas orientações políticas.

Refere-se a uma ética social associada ao legalismo?
Exactamente. Remeter tudo para a área do que é ou não crime não justifica politicamente determinado tipo de opção. Por exemplo: se não é crime, está justificado. Não pode ser assim. O empolamento do aspecto criminal deste tipo de realidades tende a desvalorizar a discussão política sobre as opções. Isso parece-me por vezes negativo. É retirar peso às opções políticas, às alternativas políticas que estão também em cima da mesa E esvaziar de conteúdo uma discussão política sobre medidas que são tomadas. É importante não nos deixarmos aprisionar por um discurso aparentemente moralista sobre a corrupção, que no fundo impede uma discussão mais clara e transparente sobre a qualidade e sobre a orientação política das decisões que são tomadas.

A quem atribui a principal dificuldade por esses obstáculos?
Resulta, por um lado, dos próprios agentes políticos que muitas vezes não querem assumir claramente as divergências às suas alternativas políticas e preferem de alguma maneira discutir as questões no plano jurídico-legal ou criminal. Também à comunicação social que encontra maior facilidade na abordagem destes temas apenas nesta perspectiva, não tendo ela própria de questionar politicamente o sentido das decisões que foram tomadas. E aos próprios agentes judiciários, os magistrados, advogados, juízes que vêem empolado o seu papel se se centralizar toda a atenção no aspecto criminalístico da questão. Acaba por haver uma conjunção de actores e de discursos que empolam todo o discurso da corrupção e esvazia o discurso político subjacente às medidas tomadas. Não estou a menorizar a necessidade nem a importância do combate, da criminalização e da prevenção da corrupção.

Não deveria haver uma avaliação ética também por parte dos agentes da justiça?
Por isso é que uma das questões fundamentais, para mim, é construir um sistema de prevenção, não só da legalidade ou ilegalidade, mas da economicidade, da eficiência económica das medidas, que impedisse à partida que os prejuízos se produzissem, construir um sistema preventivo. Todos sabemos que a repressão, por mais dura que seja, tocará sempre uma parte muito pouco substancial dos factos que ocorrem. Será assim em toda a parte do mundo, não é só em Portugal. Por outro lado, colocar toda a questão, do ponto de vista da penalização, da actuação do sistema judicial e não discutir politicamente as razões de ser de um sistema que proporciona esse tipo de situações leva, em meu entender, a uma menorização democrática e das alternativas democráticas, que são necessárias construir a cada momento em qualquer sociedade. Não podemos construir um pensamento social com base apenas no “é legal é ilegal”. Temos também de construir um pensamento sobre se é justo ou não é justo, se é útil ou não é útil se é adequando ao bem-comum ou não é adequando ao bem-comum. E pode não passar pela legalidade ou não legalidade de terminado tipo de soluções.

Muitas vezes, há nos agentes públicos um facilitar de uma mentalidade social que potencia a corrupção e que tem a ver com a cunha. Como é possível criar um sistema que as pessoas percebam que a cunha não faz sentido?
A cunha só não faz sentido quando desenvolvermos um sistema público onde os entraves burocráticos, as dificuldades não são algo difícil de ultrapassar pelo cidadão comum. A transparência e, por outro lado, a desburocratização são os melhores instrumentos para tornar a cunha obsoleta. Além de que passa por uma cultura em que deve ser educada qualquer pessoa desde muito pequena, uma cultura cívica diferenciada, que compete fundamentalmente à escola pública, às diferentes religiões, aos agentes culturais, à comunicação social, a cada um de nós nos seus locais de trabalho. Há todo um sistema cultural que é preciso construir, que passa por saber que tipo de relação devemos desenvolver com os serviços públicos.

 A sua proposta de visto prévio é uma forma de construir essa nova cultura?
A minha visão de combate à corrupção passa, sobretudo, pelos mecanismos de prevenção. Porque sei, da minha experiência de magistrado, que os casos que vêm a ser descobertos e punidos, onde a corrupção efectivamente se dá, são sempre uma minoria. A forma de combater a corrupção é educar e prevenir. E como se previne? Criando barreiras a que a corrupção possa ter lugar.

Que sinais tem de que as coisas possam mudar nesse sentido? Há algum trabalho do Tribunal de Contas ou do Parlamento?
O Tribunal de Contas integra o Conselho contra a Corrupção, que vai fazendo recomendações. Há os relatórios do Tribunal, mesmo quando não têm consequências financeiras imediatas.

Mas que sinais existem de que pode mudar alguma coisa em relação aos grandes negócios do Estado como as privatizações?
O que eu vi de mais interessante em relação ao controlo prévio é esta lei n.º 50 de 2012 relativamente ao sector local. Transpor esta lógica para toda a administração e para o sector empresarial seria extremamente importante. É a primeira vez que vejo uma lei que submete a controlo de visto prévio não apenas a legalidade formal do contrato, mas permite também avançar para o controlo do financiamento, exploração, viabilização, sustentabilidade económica das empresas municipais. Isto é muito importante, muda radicalmente a lógica do sistema. Pena é que só esteja para as empresas municipais e não possa avançar para áreas mais relevantes do ponto de vista económico e financeiro. E em benefício do próprio sistema político, porque muitas das suspeições que se levantam não seriam levantadas. As questões ficariam mais transparentes. Muitas suspeições não aconteceriam e se calhar muitos contratos também não.

Quando sabemos que o conjunto das privatizações representa 2% da dívida, isso seria um bom ângulo para análise de sustentabilidade?
Porventura seria. Saber isso e saber se não havia sectores privatizados que poderiam ter contribuído mais para o desenvolvimento da economia nacional permanecendo no Estado do que a sua privatização. Não é por acaso que a nossa Constituição refere um sector público, uma coisa que não devemos esquecer e que não pode ser derrogado por qualquer acordo externo. E nós, como cidadãos, não podemos ver a coisa sempre apenas exclusivamente sob o ponto de vista financeiro momentâneo. Também temos de ver as questões do ponto de vista do interesse do bem-estar do cidadão, do seu acesso a um determinado conjunto de serviços e de bens.

O sentido comum?
O sentido comum. É preciso avaliar as missões que a Constituição dá ao Estado e a sua realização possível. Há determinadas áreas que o Estado detinha e explorava, que não eram de facto rentáveis, mas permitiam concretizar direitos. Temos de ultrapassar a lógica de que só os direitos sociais são onerosos. Não é verdade. Todos os direitos, mesmo os direitos mais simples, de primeira geração, como por exemplo, o direito à liberdade, o direito à segurança, tudo isso.

O direito à liberdade é caríssimo.
É caríssimo. Manter polícias na rua para garantir a liberdade das pessoas. Manter todo um aparelho judicial e notários e conservatórias para garantir o direito à propriedade. Quando se fala que há direitos sociais que são onerosos e que esses se podem realizar ou não em função da situação económica do país, não se diz que todos os outros também são onerosos. E também não se vão realizar em função da situação do país? Vão. Portanto, há que ter em atenção, quando se avaliam estes aspectos, não apenas uma visão económica ou financeira estrita. A economia é a gestão do bem comum, do bem público. Aliás, chamava-se economia política.

 Em 1994/95 foi aprovado na Assembleia o pacote da Transparência, que apertava os conflitos de interesses dos deputados. Entre outras coisas proibia os deputados de exercerem advocacia em acções que envolvessem o Estado ou negócios com o Estado ou de serem sócios de escritórios que o fizessem. Em 1995, uma das primeiras iniciativas de Almeida Santos como presidente da AR foi propor a suspensão desta regra, que foi aprovada em plenário. Seria importante que ela fosse reposta?
A mistura entre interesses públicos, privados e políticos é algo que ultrapassa a pequena advocacia e tem que ser pensada hoje ao nível das grandes empresas da advocacia ou de outras.

Mas acha bem que um deputado seja sócio de uma sociedade de advogados?
O que tem de haver é regras estritas nessa matéria. Exactamente quais são não posso dizer. Como é que uns deputados podem fazer consultadoria para o Estado e depois ao mesmo tempo pôr acções contra o Estado? É outra questão de referir. Há todo um conjunto de normas que têm que se rever nessa matéria. Isso implicaria clarificar a situação, mas não apenas em relação aos advogados.

Também aos consultores.
Tudo. Há todo um conjunto de negócios que pode ser de empresas de consultadoria financeira ou de outras. Em que é que um sócio de uma empresa de auditoria económica e financeira difere de um advogado? Se calhar, o que temos de fazer é um código ético mais apertado.

Voltando aos advogados, há um caso clássico. Jorge Sampaio era sócio de um escritório de advogados em Lisboa e quando foi Presidente da República o seu nome manteve-se na placa da porta do prédio, entre os sócios.
Mas não tem dúvidas de que o doutor Jorge Sampaio não se terá aproveitado disso? Se há pessoa que não é suspeita é o doutor Jorge Sampaio.

Mas até que ponto é que o escritório não beneficiou de ter o nome do Presidente da República na placa?
É provável que sim, não sei. Agora, o que eu acho é que temos de criar todo um conjunto de normas que não se destinam apenas a advogados, mas a todas as entidades que prestam serviços ao Estado ou que podem ter intervenção pública. Regras para um conjunto de entidades que podem influenciar o poder político. A contrapartida disso num país como o nosso é encontrar pessoas que vão para deputado e queiram cortar definitivamente com a sua carreira profissional. Há ideias que fazem sentido, mas têm consequências. Têm consequências a nível do pagamento dos ordenados dos deputados. Seria interessante um sistema em que cada deputado recebesse consoante o que declarou ao fisco antes de ir para deputado e se tivesse ganho mais do que como deputado, nesses casos, o salário seria equiparado. Isso é razoável. Mas com exclusividade total, tal como hoje é para os magistrados, que não podem nem sequer dar aulas.

Os deputados não podem dar aulas pagas, se for em universidades do Estado, se forem privadas já podem.
Os magistrados, nem em privadas nem em públicas.

 Como vê o facto de Guilherme Silva ser deputados e advogado de entidades políticas e públicas?
É o mesmo problema. Não devia existir nem advogados, nem consultores económicos, nem jornalistas. Há todo um conjunto de profissões que, pelo poder que têm de interferir com interesses públicos, não deviam exercer determinadas funções. Quando digo que não quero estigmatizar os advogados é porque a questão é mais lata. Há empresas de consultadoria com pessoas que ora dão pareceres ao Governo, ora vão para o Governo, estão no Parlamento, estão em comissões de controlo e de fiscalização. Há um conjunto de situações que têm de ser reguladas de forma mais transparente e clara.

O contrato da compra dos Estaleiros de Viana pela Martifer vai ao TC. De acordo com o que diz, vai ser uma fiscalização muito imperfeita.
É a fiscalização a posteriori que a lei prevê. Penso que a fiscalização para ser efectiva e útil tinha de ser feita numa fase anterior. Mesmo que essa fiscalização não originasse necessariamente que o Tribunal recusasse o visto. Só que daria o seu parecer e se as consequências se viessem a verificar haveria matéria para a responsabilização a posteriori de quem tinha tomado a decisão contra o parecer. Era muito mais fácil, muito mais claro e muito mais responsabilizante. Seria dizer “o contrato do ponto de vista legal está certo, do ponto de vista financeiro existem aqui riscos”. Mas compete aos políticos decidir. Voltando ao que disse, não podemos judicializar as decisões políticas. Nem podemos convencer o cidadão de que tudo o que o direito e os tribunais não dizem que está errado é necessariamente bom.

Há uns anos quando se falava de contrapartidas, as equipas de peritos que andavam de volta dos submarinos diziam que o problema era as contrapartidas não terem tido uma fiscalização prévia, a montante, antes de os contractos serem firmados. O Tribunal de Contas seria a entidade?
O Tribunal de Contas e, num plano diferente porque dependem do Governo, a Inspecção-Geral de Finanças ou outros órgãos de controlo interno. Mas o Tribunal de Contas tem efectivamente essas possibilidades. E numa situação como a nossa, em que grande parte do desempenho das funções públicas pode ser privatizada e entregue ao sector privado, isso implica um reforço do controlo e da transparência do sistema. Já não discutindo a opção. Para ir por aí, então temos de reforçar muito todos os mecanismos de controlo da utilização dos dinheiros públicos. Um dos problemas que até o historiador inglês Tony Judt veio dizer é que, não especificamente em Portugal, mas em toda a Europa e no mundo, se assiste a uma expropriação dos bens públicos pelo sector privado.

É a grande crise do bem-comum.
Neste momento o que assistimos é de facto a apropriação dos bens públicos por parte de um sector privado e por parte de interesses não controlados e muitas vezes não transparentes, que têm a ver com a própria identidade dos negócios. É por isso que a análise dos negócios não pode ser vista pela sua legalidade estrita, mas pela sua utilidade social, das suas prioridades. Num sistema como este, em que se diz que o Estado deve ser reduzido, no que é uma opção ideológica que deve ser discutida nesse plano, ao menos que haja, antes das decisões serem tomadas sob a ideia de que vai beneficiar o bem comum, que haja alguém que verifique se vai ou não vai. E se daí resultar o contrário do que se previa, então alguém tem de ser responsabilizado.

Acredita que o poder autárquico hoje é menos corrupto por causa de uma lei como essa que referiu?
Por uma lei como esta mas também por toda uma actividade de inspecção que tem sido mais apertada nos últimos anos. Penso que tem havido uma alteração substancial nesse aspecto e não só no poder autárquico. Há outro aspecto que tem a ver com a maior transparência, a maior eficiência e a melhor resposta que é a preparação dos funcionários públicos e do poder local. A qualificação e a preparação técnica são fundamentais para que as pessoas possam também autodeterminar-se, em relação a determinadas orientações que podem pôr em causa o bem-comum. Nesse sentido, o problema das carreiras e da autonomia dos funcionários é muito importante, quer dizer, não podemos criar sistemas de carreiras que condicionem a capacidade de dizer não de um determinado funcionário a um determinado acto que ele entender que não é legal. A concepção que tivermos das carreiras dos funcionários é importante no combate à corrupção.

Como?
Primeiro, não pode ser igual ao dos privados. Têm de exercer funções de ordem pública e muitas vezes de autoridade pública e, portanto, têm que ter uma capacidade de resposta e de auto-responsabilização que no sector privado não é exigível. Comparar métodos de gestão pública com métodos de gestão privada nesse aspecto é um erro substancial, pode por em causa todo o processo de luta contra a corrupção. Há todo um conjunto de questões que tem de ser pensado integradamente. Por isso, a minha preocupação é não me cingir apenas a questões de repressão penal, que, todavia,  são necessárias e devem ser melhoradas.

O que está a falar é de uma opção ideológica.
Essa opção, numa democracia, não é boa ou má. É o juízo que as pessoas fizerem dela. As pessoas têm é que estar munidas de instrumentos para perceber as consequências da opção. O que eu digo é que não podemos tapar as opções em nome de um discurso contra a corrupção como se tudo fosse bom se não houvesse corrupção. Então criamos o fantasma da corrupção para justificar todo o tipo de opções que têm outra natureza. É claro que podemos prevenir mais ou menos. Voltando ao princípio, o que acho da proposta da ministra? Acho bem, só que temos de ter a noção do real efeito e significado que isso possa ter.

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