Análise: o país ficou para lá do palco e das luzes…

Os congressos partidários são sempre momentos de afirmação de identidade de grupo, de identificação e de solidariedade entre iguais, são como uma espécie de festa de tribo. Mesmo quando há franca assunção de divergências de opinião e de dúvidas mantém-se sempre um sentimento de pertença e de familiaridade entre delegados e dirigentes que puxa à partilha de emoções. Os congressos partidários são geralmente uma festa. E no que toca a congressos, o PSD tem tradição de organizar grandes e belas festas.

Este fim-de-semana foi isso que aconteceu no Coliseu dos Recreios de Lisboa, por mais que Passos Coelho tenha tentado refrear os ânimos no discurso de encerramento. "Não temos nenhuma vontade de festejar", contrariou. O calor da confraternização apenas foi atingido por um balde de água-fria, quando, no sábado, os delegados ouviram Passos anunciar que o número um ao Conselho Nacional era Miguel Relvas. O refrear das palmas equivaleu a um silêncio gelado, que se reflectiu na baixa votação que a lista da direcção obteve no domingo de manhã.

Presidenciais de 2016
O PSD fez a sua festa retemperadora do músculo partidário e Passos até conseguiu a proeza de se ver legitimado como líder pela presença de quatro antigos presidentes, Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes, Luís Filipe Menezes e Marques Mendes, dos quais só o último não brilhou no palco. Mas a legitimação histórica potenciada pela celebração dos 40 anos da fundação partidária não significou unidade. E o congresso serviu mesmo de rampa de lançamento para a pré-colocação interna de candidatos às presidenciais de 2016.

Colocando no relativo lugar a ideia de que se vivem tempos incomparavelmente difíceis, Marcelo fez questão de assumir-se como fundador e de lembrar a dificuldade que foi construir o PSD - falou mesmo de quando teve de fugir por um telhado ao cerco de uma sessão de esclarecimento no Alentejo. E demonstrou que continua politicamente vivo e é um comunicador raro.

Também Santana exibiu um certificado de vitalidade política, num importante discurso político. Exibindo sensibilidade social, fez uma defesa do Estado Social, nomeadamente no Serviço Nacional de Saúde, que acabou por ser um raro momento de concretização de um discurso social-democrata.

A festa do PSD também ficou marcada por ausências. A anterior líder, Manuela Ferreira Leite, não foi sequer nomeada em nenhuma intervenção. E, no partido que liderou 10 anos e em cujos congressos costuma rivalizar em popularidade com Sá Carneiro, desta vez, Cavaco Silva foi praticamente ignorado, numa demonstração da azia que existe no partido do Governo em relação ao Presidente da República. Foi preciso Menezes subir ao palco para afirmar que Cavaco "tem tido uma independência sensata" e "é um homem assisado, é um homem patriota".

Mas a maior ausência dos discursos e dos conteúdos políticos do Congresso foi o país e as pessoas. A meio da tarde de sábado, Nuno Morais Sarmento ainda alertou para o facto e exigiu mudança, ainda que fazendo questão de reconhecer a liderança de Passos. "Temos de dizer aos portugueses como vamos viver", afirmou, acrescentando que é necessário ir além das "estatísticas" e das "folhas de excel", apresentando aos portugueses uma "esperança nova que tem que ir mais longe e dizer mais do que a moção de estratégia" de Passos. Defendeu que é preciso "mais pessoas" e "mais política" e a capacidade de recuperar o lado "imaterial" da política e devolver às pessoas a capacidade de "sonhar".

Apenas Santana, já na madrugada de domingo, se preocupou em voltar às dificuldades do país real, usando como exemplo o Portugal profundo que descobriu como provedor da Misericórdia de Lisboa. Seguindo-se uma também importante intervenção do histórico presidente das Caldas e agora vereador em Loures, Fernando Costa, que até chamou a atenção para a corrupção e pediu a Paula Teixeira da Cruz que insista no diploma sobre enriquecimento ilícito.

Fechado sobre si
O PSD de Passos Coelho chegou ao Coliseu dos Recreios como um partido cercado. Acossado, até. E o primeiro discurso do líder revelou alguns sinais de autismo. Deu início a uma quase paranóica proclamação ideológica do PSD como partido social-democrata, um mote que foi exaustivamente repetido por quase todos os oradores. Falou do sucesso do cumprimento do programa de ajustamento, da iminência do momento mágico da saída da troika. Um discurso fechado que se sublimou pela auto-satisfação que se prolongou durante a noite de sexta, a manhã e o início da tarde de sábado, em vários tons e em vários estilos. Mas, na abertura, Passos não foi capaz de avançar com uma ideia de país nem uma proposta para o país, e o Congresso decorreu sem que fosse feito qualquer debate sobre qual o modelo de desenvolvimento que o PSD quer para depois de 17 de Maio. Já no encerramento, confirmou que quer avançar na reforma do Estado e insistiu nos apelos ao consenso com o PS.

Um discurso de glória sobre a obra feita que levou Passos e vários dirigentes a lançarem a campanha das legislativas de 2015 com ar de quem está certo da possibilidade de vitória. Já a outra campanha eleitoral lançada no congresso e a mais próxima, as europeias, ficou formalmente marcada pelo anúncio do candidato Paulo Rangel, o qual tratou de iniciar a sua campanha em tom comicieiro e com uma arrogância e uma agressividade em relação ao PS, que seria, aliás, usada por vários congressistas, e que teve um momento paradigmático com Marcelo.

É de sublinhar que a atitude face ao PS foi dúplice. Por um lado, apelos constantes ao entendimento e a certeza de que será necessário um pacto de regime com os socialistas. Uma atitude formal e veementemente assumida por Passos no encerramento. Por outro lado, o congresso teve momentos de absoluto desbragamento no ataque ao líder do PS, chegando a raiar-se a boçalidade quando Hugo Soares, líder da JSD, afirmou: "O pisca-pisca de António José Seguro faz dele a Rute Marlene da política portuguesa."

A duplicidade de tratamento surgiu também em relação ao CDS, parceiro de coligação, embora mais ténue. Mas o CDS foi praticamente ignorado nas intervenções. Paulo Portas e o CDS só tiveram honras de tratamento institucional na intervenção do líder do grupo parlamentar Luís Montenegro e direito a pequenos jogos de ironia e de crítica por parte de Marcelo Rebelo de Sousa.

O equilíbrio formal do Governo foi salvaguardado por Passos na intervenção final. Passos salientou que esta é a "primeira coligação que chegará ao fim do seu mandato" e garantiu que para ambos "Portugal está primeiro". Uma saudação feita com Portas na sala, com o objectivo de limpar a imagem institucional das relações da coligação, a finalizar um discurso que encerrou a 35ª assembleia magna do PSD, mas que mais parecia estar a falar para outro congresso e não para a festa partidária que decorreu durante dois dias no Coliseu dos Recreios.

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