Afonso Costa e o revisionismo em história

Se Afonso Costa é apresentado como um político cobarde e corrupto é devido a um processo acelerado de revisionismo.

Sou leitor assíduo da crónica Consoantemuda, que Rui Tavares assina no jornal PÚBLICO, a qual, normalmente, expressa pontos de vista singulares sobre a complexa realidade política que nos envolve.

Todavia, no dia 24 de junho, escreveu uma crónica histórica que intitulou de “Tempos elétricos.” E nela abordou dois episódios da vida de Afonso Costa (1871-1937) que, na sua leitura, caraterizavam a sua personalidade: a cobardia política, referindo-se ao episódio da queda do elétrico em andamento que lhe causou um traumatismo craniano e o impediu de assumir de imediato a presidência do governo, pois julgou estar a ser alvo de um atentado à bomba, em resultado de um curto-circuito que produziu um clarão e um estrondo; e a corrupção, que estaria na origem da sua prisão, na Fortaleza de Elvas, entre dezembro de 1917 e 30 de março de 1918. Neste último caso, para lembrar, alegadamente, que não seria a primeira vez que os portugueses tiveram um ex-primeiro-ministro detido por corrupção.

Considero muito infeliz a escolha destes dois episódios para caraterizar o perfil moral do político Afonso Costa. Será que o ministro da Justiça do Governo Provisório, enquanto autor da Lei da Separação do Estado das Igrejas (1911), não teve coragem política para promulgar e aplicar esta lei, típica de um Estado moderno, causadora de enormes clivagens políticas na sociedade portuguesa, mas que nem o ditador Salazar se atreveu a revogar?

E se Afonso Costa, ainda hoje, é o único presidente do Governo e ministro das Finanças português que, em contexto democrático, obteve dois superavites 1912-13 e 1913-14 (cf. Nuno Valério - Os Orçamentos no Parlamento Português, 2001), isso é típico de um político corrupto? É que se os conseguiu foi porque os preparou com, entre outras medidas, a chamada “Lei Travão”, pela qual nenhum deputado, em sede de discussão do OGE, poderia propor medidas que aumentassem a despesa pública ou diminuíssem as receitas sem pedir, previamente, a autorização da Comissão de Finanças e do ministro das Finanças. Esta defesa acérrima, e sobretudo a sua concretização, de políticas de finanças públicas equilibradas caraterizam o comportamento de um político corrupto? Nessa altura, o que dizer das dezenas de ministros das Finanças que de então para cá ocuparam o cargo e só conseguiram défices?

Importa recordar que no final do ano de 1917, Portugal participa na I Guerra Mundial e tem a combater mais de 100 mil homens. Cerca de metade defendiam, desde  o verão de 1914, as fronteiras das colónias de Angola e Moçambique. Enquanto os outros 50 mil portugueses combatiam na Flandres. Nesta altura, Afonso Costa é presidente do Governo e regressa a Portugal depois de ter participado na Conferência dos Aliados de Paris, quando em Lisboa, entre 5 e 7 de dezembro, Sidónio Pais chefia um golpe de Estado que instaura a ditadura “dezembrista” durante um ano, o tempo necessário para realizar a sua política de contramobilização que conduziu ao desastre militar em La Lys. Suspendeu, de imediato, a Constituição da República de 1911, exila o presidente Bernardino Machado e detém no Porto, no dia 8, Afonso Costa, o presidente legítimo do Governo. Na véspera, as autoridades sidonistas tinham sido cúmplices no assalto e destruição em Lisboa, pela populaça, da casa onde vivia a sua família e também do seu escritório. O ditador Sidónio Pais vai manter Afonso Costa detido no Forte de Elvas durante mais de três meses sem nunca lhe ter promovido um inquérito, feito uma acusação, instaurado um processo, político ou criminal, e, portanto, nunca o levou a julgamento. Tudo na mais flagrante violação dos mais elementares direitos humanos e das leis de um qualquer Estado de direito. Onde estão, pois, as provas de que Afonso Costa era um presidente do Governo corrupto?

Esta foi, contudo, apenas a primeira de uma série longa e continuada no tempo de violações dos direitos, garantias e liberdades, em relação ao primeiro português que não só foi fundador (1920), mas também, na qualidade de representante de Portugal, foi eleito para presidir a uma assembleia da Sociedade das Nações (1926). É que, em 1927, por exemplo, a Ditadura Militar demite-o, sem a instauração de qualquer inquérito disciplinar, de diretor e de professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, dando origem a um exílio e a uma longa luta antifascista que marcaram os seus últimos onze anos de vida, numa altura em que integra a Junta Diretiva da Liga de Defesa da República.

Não foi por acaso que Salazar o declarou, na nota oficiosa de 1934, seu inimigo político e do Estado Novo, mas em momento algum desse extenso texto o acusa de cobarde e de corrupto. E não obstante, quando Afonso Costa morre no exílio de Paris, em maio de 1937, era o único político que tinha capital e prestígio político para conseguir a formação da Frente Popular Portuguesa e aglutinar nela o PCP.

Se Afonso Costa é apresentado como um político cobarde e corrupto é porque a história contemporânea é objeto, nos tempos que correm, de um processo acelerado de revisionismo. Isto porque Rui Tavares cita, e recomenda, a “curta e ótima” biografia “Afonso Costa” de Filipe Ribeiro de Meneses. Porém, e se não encontrou lá esta e muita outra informação sobre Afonso Costa, eu pensaria duas vezes em a recomendar publicamente. Tenho grandes dificuldades em perceber, por exemplo, como se pode recomendar um livro que nem sequer compila a bibliografia da autoria do biografado, enquanto professor universitário, advogado, deputado, governante e lutador antifascista? É que pelo menos aquela que é conhecida e foi publicada pelo historiador Oliveira Marques, desde os anos de 1970-8O, ali deveria constar.

No entanto, estou à vontade para escrever sobre esta matéria, pois no passado dia 9 de abril tive a oportunidade de debater em público sobre Afonso Costa, enquanto investigador, que o elege como tema de Pós-Doutoramento, com o historiador Filipe Ribeiro de Meneses, na Biblioteca Municipal da Figueira da Foz, em sessão repleta e muito participada. E ali, tal como no seu livro, ficou claro que desconhece a natureza socialista integral do seu pensamento jurídico-político e a programática pela qual orientou toda a sua ação política, expressas, sobretudo, nas teses universitárias que apresentou em 1895 à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nesta começou por lecionar Economia Política para assumir, entre 1899 e 1910, a cátedra de Organização Judiciária. O mesmo se diga para os quinze títulos de livros jurídicos que entretanto identificámos, bem como o teor doutrinário dos mais de 300 artigos, também da autoria de Afonso Costa, que estão publicados em diferentes jornais republicanos.

Em suma, está por fazer com Afonso Costa - e o mesmo é valido, entre outros, para figuras centrais da 1.ª República como António José de Almeida e Brito Camacho - um trabalho semelhante ao que, de há muito, o historiador Norberto Ferreira da Cunha desenvolve no Museu Bernardino Machado em Vila Nova de Famalicão, ou seja, criar uma unidade de interpretação que reúna, conserve e difunda, para o grande público e para a investigação, a memória documental e iconográfica, que com ele se relaciona, e que, entre outras iniciativas, organize a publicação das suas “Obras”.

Bolseiro de Pós-Doutoramento da FCT

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