Abriu-se uma grave crise política no interior do Partido Socialista

É importante que o país compreenda o que António José Seguro e António Costa pensam.

Por razões da mais elementar prudência tenho-me deliberadamente abstido da formulação de considerações acerca dos resultados das eleições europeias, sobretudo no que ao PS diz respeito.

Olhando para as múltiplas interpretações que têm vindo a público ocorre-me a velha história de um alto dirigente do Partido Comunista chinês que, interrogado sobre os efeitos provocados pela Revolução Francesa no devir da humanidade, optou pela seguinte resposta: “Seria precipitado extrair conclusões definitivas acerca de um acontecimento que ocorreu apenas há duzentos anos atrás.”

Convindo que umas eleições europeias não têm análoga importância histórica e que o destino da humanidade não está suspenso das convulsões internas do Partido Socialista haverá, contudo, que ter uma certa cautela na abordagem da questão em causa. Na verdade, só os incautos continuam a privilegiar os factos em detrimento das interpretações.

A propósito de um conflito de interpretações acerca do resultado eleitoral verificado abriu-se uma grave crise política no interior do Partido Socialista. Essa crise não deve ser colocada nem no plano da moralidade nem no domínio da legitimidade. Pelo contrário, ela só poderá ter sentido se devidamente tratada no campo da confrontação política, estratégica e, se for caso disso, doutrinária.

É claro que aqueles que despudoradamente fazem comparações indevidas entre o resultado agora obtido e outros verificados em contextos históricos e eleitorais completamente distintos não concorrem para uma discussão séria sobre aquilo que verdadeiramente importa: o futuro do Partido Socialista em vários aspectos determinantes. Quando, por exemplo, se estabelece uma comparação entre o resultado agora alcançado e o resultado obtido há dez anos atrás, não apenas se está a cometer um erro analítico como se está a incorrer numa verdadeira desonestidade intelectual. Isto para já não falar das comparações que algumas mentes mais ligeiras se têm atrevido a fazer com resultados verificados em eleições de natureza completamente distinta. Só que não é isso o mais importante, já que estou absolutamente certo que o que move António Costa é algo de mais profundo e mais  respeitável: a convicção de que pode alargar a influência política do Partido Socialista, reforçar a sua capacidade oposicionista e potenciar a sua expansão eleitoral.

Nessa perspectiva, haverá três questões que devem ser equacionadas com absoluto rigor quer por uma quer por outra candidatura. São elas as seguintes: que tipo de oposição deve o Partido Socialista prosseguir? Que estratégia deve ser valorizada no âmbito do relacionamento com as outras forças partidárias? Qual o posicionamento que deve ser privilegiado no plano da política europeia? Comecemos por responder à questão da definição do estilo de oposição a desenvolver. Deve o Partido Socialista optar por um modelo de oposição permanente e subsidiária da acção fiscalizadora empreendida pelo Tribunal Constitucional ou, pelo contrário, deve privilegiar um outro estilo onde a firmeza nas questões essenciais não exclua a disponibilidade para algum diálogo com o Governo, desde que sejam tidas em consideração legítimas preocupações socialistas que suscitam, aliás, ampla adesão nacional? Esta questão não é de menor importância. Quando há três anos atrás fui o primeiro a propor a opção pela abstenção, aquando da discussão do Orçamento de Estado apresentado pelo Governo, fi-lo por razões pertinentes, já que estava em causa a afirmação de uma linha de conduta que poderia e deveria ter marcado toda a presente legislatura. Essa opção, a ter sido plenamente prosseguida, teria reforçado a identificação do PS com um elevado sentido de responsabilidade nacional, sem prejudicar a sua capacidade de enunciação concreta de um programa político alternativo. Teria, além disso, permitido a resolução de um problema que se viria a revelar crucial: o do relacionamento com o nosso próprio passado governativo. Só um partido suficientemente forte para assumir o sentido do compromisso teria estado em condições de sustentar, com sucesso, uma explicação sobre as origens da crise distinta daquela que a direita procurou apresentar. O problema volta a colocar-se agora. Por muito que isso desagrade, e até possa ser percebido como um verdadeiro sacrilégio nalguns sectores do Partido Socialista, os portugueses sabem que a austeridade começou connosco. Por isso mesmo, são levados a não acreditar em radicalismos retóricos que parecem relevar mais de um impulso mágico do que de uma criteriosa avaliação da situação real do país.

A segunda questão, a que concerne ao relacionamento com as outras forças políticas, é também extraordinariamente importante. Nos últimos tempos temos assistido a uma incompreensível tentativa de estigmatização pública de todos quantos se não opõem à simples possibilidade teórica da celebração de entendimentos futuros com partidos situados à nossa direita. Compreendo humanamente o impulso juvenil de uns quantos, suscita-me profunda perplexidade o serôdio sectarismo de muitos outros. Porque estranha razão haveria o Partido Socialista de privilegiar entendimentos com partidos com quem nunca até hoje se entendeu devido a divergências doutrinárias profundas e haveria de excluir em absoluto acordos com partidos que, malgrado as profundas discordâncias presentes, não se situam em temas tão importantes como o tema europeu numa posição absolutamente oposta àquela que preconizamos? Aproveito, aliás, para saudar a este propósito a coragem evidenciada há dois dias por Miranda Calha numa interessante entrevista concedida ao jornal I.

Por último, convém saber o que pensam as candidaturas em confronto acerca da política europeia. É bom que se perceba o que pretendem de facto para além das banalidades retóricas próprias deste tipo de confronto. Qual o posicionamento em relação ao tema central da criação de mecanismos que permitam a salvaguarda da moeda única, como perspectivam institucionalmente o futuro do projecto europeu e o que pensam quanto à questão do designado Tratado Orçamental europeu. Estas questões, como é óbvio, estão profundamente articuladas entre si. É importante que o país compreenda o que António José Seguro e António Costa pensam sobre cada um destes assuntos. Se assim suceder, como espero que aconteça, ambos prestarão um inestimável serviço ao PS e a Portugal.

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