Abrir Abril

Que as gerações presentes não tomem decisões que aniquilem a margem de liberdade das gerações futuras.

1. Celebramos nestes dias a coragem e a generosidade de uma geração que, pondo em risco a sua vida e a sua liberdade, se dispôs a dar às gerações coevas e às seguintes o maior dos bens: o bem da liberdade. O 25 de Abril é, pois, o momento de evocar e invocar todos aque­­les que, lúcidos e temerários, fundaram a democracia.

A justiça deste tributo não nos permite, porém, ficar por aí. Obriga-nos, isso sim e por certo, a buscar raízes mais fundas. Com efeito, foram inúmeros os que – na clandestinidade, à margem ou até por dentro do regime, na simples vida social, em agremiações cívicas ou já em movimentos políticos, na metrópole, no ultramar ou no exílio, na Igreja, na universidade ou nas artes – contribuíram, ao longo de décadas, para que se pudesse chegar ao dia 25 de Abril.

E é preciso ir ainda mais além. É que a democracia vem a ser, sob pena de contra­dição nos próprios termos, um regime político aberto ao tempo, ao tempo e ao seu livre decurso, ao tempo e ao seu livre devir. Neste sentido, a demo­cracia tem de garantir a cada ge­ração – a cada complexo de gerações de um dado tempo – a possi­bi­lidade de decidir do seu próprio des­tino. Uma democracia que não deixe li­ber­dade de escolha, de “au­to-determina­ção” e de “auto-go­ver­no” às gerações se­guintes ou – como agora se diz – às ge­­ra­ções fu­tu­ras não é, não será nunca, uma ver­da­deira de­mocracia. Por muito que isto escandalize ou fira susceptibilidades, a democracia é, de entre todos os regimes políticos, aquele que menos deve aos seus fun­da­do­res. Ainda que lhes possa dever muito... e deva efectivamente. Na verdade, ela tem de ser quotidianamente su­fragada pela vontade, pelo empenho, pelo zelo e pelo es­crúpulo – para usar uma palavra com pergaminhos na teoria política, pela “virtude” – dos que, em cada ge­ra­ção renovada, se su­ce­dem.

Celebrar a democracia e a liberdade não é, por is­so, só e tão-só queimar incenso na ara dos que, arriscando quase tudo ou mesmo tudo, fun­da­ram o regime democrático. Ce­lebrar a demo­cracia e a liberdade é também prestar tributo a todos quantos, bem antes dela, criaram o ambiente propício à revolução e outrossim a todos quantos, nestes quarenta anos, têm dado o seu melhor para con­so­lidar, enraizar e aperfeiçoar a vida democrática. Co­me­morar Abril vem a ser, por isso, celebrar os que, mesmo sem o saberem, prepararam o dia da revolução e também os que, depois dela, têm vindo a construir a democracia. Em palavras mais cruas e directas: celebrar todos, todos nós por­tu­gueses, que fazemos a democracia, rua a rua e madrugada a madrugada, com a definitiva liberdade de usar ou de não usar cravo na lapela.

2. O 25 de Abril é uma data fundadora, fundadora da liberdade. Foi esse o valor sublime que nos ofereceram, no imediato, os militares de Abril. E, logo de seguida, o povo que saiu à praça, coloriu a rua e transformou um golpe de Estado numa revolução. E um tanto mais tarde, todos aqueles – cidadãos, militares, políticos – que impediram que um totalitarismo cedes­se o passo a outro tota­litarismo e afastaram o espectro do comunismo ou de uma ditadura militar. E, finalmente, os que, com visão e discernimento, nos ligaram à Europa, promovendo a adesão na CEE, avançando para a União Europeia, apostando na dinâmica integradora do projecto europeu.

O grande legado do 25 de Abril é, pois, esse e esse mesmo: a possibilidade de cada geração – melhor, de cada complexo de gerações que habita, marca e pauta um certo tempo – tomar em suas mãos o seu destino, deixando à geração seguinte e às futuras gerações o bem maior que as anteriores lhe facultaram: a liberdade. Não se cumprirá nunca o espírito de Abril, não haverá em rigor verdadeira liberdade, se as gerações de um tempo, no gozo máximo das suas pretensas prerrogativas, inviabilizarem a liberdade das gerações de tempos seguintes; se, no fundo, privarem “o mundo que há-de vir” da possibilidade de es­colher o seu próprio caminho e de tomar em mãos as suas próprias opções. Um tempo que sequestre e aprisione o tempo das gerações que hão-de vir nega e renega o valor da liberdade.

3. É também evidente que o imperativo democrático de garantir e assegurar a liberdade das gerações futuras não pode valer ao ponto de, em seu nome, anular a liberdade de escolha das gerações presentes. Numa democracia, tem de haver um equilíbrio, uma harmonia, um balanço entre o respeito pela liberdade das gerações futuras e a efectiva fruição ou disposição de liberdade pelas gerações presentes. O critério de resolução desta tensão ou conflito potencial há-de ser sempre o de garantir a cada tempo, a cada geração, a fruição de um núcleo essencial, de uma margem fundamental, de liberdade. Que as gerações presentes não tomem decisões que aniquilem a margem de liberdade das gerações futuras e que o pretenso respeito por estas não seja de tal modo exclusivo e dominador que acabe por eliminar qualquer reduto de liberdade das gerações presentes.

4. O tempo que vivemos, quarenta anos volvidos sobre a revolução, é também um tempo para assumirmos livremente a opção de dar liberdade. De dar mais liberdade às gerações presentes, que estão espartilhadas pelo peso da dívida e de garantir a liberdade das gerações futuras, que pode estar em causa se lhes deixarmos em herança o cativeiro da dívida. A liberdade está muito além das questões económicas e financeiras, mas não há real liberdade lá onde os povos, os cidadãos e as empresas estão comprimidos pela pandemia da dívida. Todo o esforço – um esforço enorme – que a nossa geração, o nosso complexo de gerações, está a fazer para libertar Portugal e os portugueses do peso opressor e compressor da dívida é também uma via de realizar e cumprir Abril.

Deputado Europeu (PSD), cabeça de lista pelo PSD nas eleições para o Parlamento Europeu

paulo.rangel@europarl.europa.eu

 

 
 

   

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