A unidade da esquerda na saúde é possível

Onde as divergências começam é na discussão em relação aonde ir buscar dinheiro para isto.

Está escrito, discutido, divulgado, aprovado, o programa de Saúde do Livre/Tempo de Avançar. Foi elaborado por uma larga estrutura de profissionais e não profissionais da saúde. Foi divulgado a pessoas de outras organizações. Foi discutido. Enfim, estabeleceu-se uma prática de democracia, que não tem a ver com votos, nem com sondagens.

O que se pode perguntar é em que medida é que os programas da saúde dos vários partidos de esquerda são, pelo menos em parte, sobreponíveis e se não poderá haver um programa comum unitário em que possamos assinar por baixo.

Estamos de acordo em que tem que haver “Saúde em todas as políticas”, ou seja que não pode ter saúde quem come mal, habita mal, está desempregado, vive sob crispação e animosidade. Pode parecer uma verdade de La Palisse. Mas se virmos bem não está de acordo com isto a ideologia dos que veem na desigualdade um estímulo, na competição uma regra, nos que querem pôr o “empreendorismo” no currículo escolar, do qual saiu a música e a abertura a outras artes. Temos que acreditar que a esquerda, toda a esquerda não aceita isso.

Estamos de acordo em que o desenvolvimento dos cuidados primários de Saúde vai impedir o desaguar de todas as situações nas urgências hospitalares. Mais uma vez é uma verdade óbvia e demonstrada pelo recente relatório anual do Ministério da Saúde, que assinala que 40% dos atendimentos nos Serviços de Urgência hospitalares podiam ser resolvidos nos Cuidados Primários. Mas já não são óbvias as soluções concretas. Para os cuidados primários funcionarem é necessário repor os quadros destruídos por este Governo desde 2011, contratar médicos, enfermeiros, assistentes operacionais. Sai barato se forem impedidas idas às urgências hospitalares, agudizações de doenças crónicas evitáveis, sempre com grandes dispêndios para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). É pois e concretamente repor as estruturas dos Centros de Saúde e abrir mais Unidades de Saúde Familiar, que provaram ser uma solução para a nossa rede de cuidados. É necessário abrir camas de cuidados continuados e fortalecer as Unidades de Cuidados na Comunidade, que ficam a montante de tudo o resto e podem evitar consultas e institucionalizações de idosos.

Estamos de acordo em que os hospitais devem ter financiamentos adequados e programados, para não dependerem de novos “pedidos” ao longo do ano.

Estamos de acordo em que os cuidados primários devem ter autonomia financeira com orçamento próprio e não dependerem das Administrações Regionais de Saúde. Estamos de acordo em que deverá haver uma articulação formal entre os hospitais e os cuidados primários, tal como parcerias com as autarquias e outras instituições de base, de modo as decisões serem articuladas, integradas e o mais próximo possível das comunidades.

Pode mesmo dizer-se que estamos todos de acordo que se deve separar os serviços públicos dos privados e que o SNS deve maximalizar a utilização dos seus recursos. Não há razão para se pagarem 22,3 milhões de euros em endoscopias gastrenterológicas, quando temos bons especialistas e equipamento nos Serviços Públicos. Não se pode é deixar fugir os especialistas para o privado ou para o estrangeiro e deixar deteriorar-se o material por falta de recursos para a manutenção. Como se vê, paga-se caro.

Estamos de acordo em ser rigorosos na regulação dos privados não deixando que ocupem territorialmente o espaço do público e que vão gradualmente invadindo a oferta de serviços naquilo que o SNS, também gradualmente, vai sendo insuficiente. Estamos de acordo em que o Estado não ande a sustentar os privados através da ADSE.

Estamos de acordo em defender as carreiras médicas e de enfermagem, com elas constituindo a estrutura dos serviços, sem contratar empresas para prestações avulsas.

Enfim, estamos de acordo na defesa intransigente do SNS, de forma concreta e não apenas discursiva.

Em tudo isto há um programa mínimo e indispensável em relação ao SNS e à Saúde em geral perante o qual podíamos assinar por baixo, o Bloco de Esquerda, o Livre/Tempo de Avançar, o Partido Comunista e o Partido Socialista. Procurando as coincidências, sem andar à procura de todas as diferenças por razões de caça ao voto. O mesmo se pode passar com a Educação e a Segurança Social.

Esta convergência é necessária e terá que ter reflexos no futuro Parlamento, se quisermos tirar a cabeça para fora de água e começar a fazer o difícil caminho para sair da situação de sofrimento social e profunda desigualdade em que vivemos.

Onde as divergências começam é na discussão em relação aonde ir buscar dinheiro para isto (embora este programa não exija um orçamento que fique “acima das nossas possibilidades”), ou seja, até onde vai a redistribuição da riqueza e como é que vai ser a negociação da dívida, que está a aumentar e que todos sabemos que não é pagável e constitui uma renda para os credores, que pretendem ser os nossos eternos e implacáveis senhorios. Sobre isso temos todos posições diversas, suficientemente diferentes para estarmos organizados em partidos diferentes. Mas as divergências também se discutem e a realidade vai-nos obrigando a não ter verdades absolutas. Todavia, a unidade é exequível até a um limite, que deve ser o mais amplo possível. Vamos experimentá-la. Ou então entreguemo-nos na fatalidade da direita e procuremos reforços para defender o bastião de cada um, que não coincide com a defesa dos direitos da população.

Médica, candidata a deputada pelo Livre/Tempo de Avançar

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