A tramóia acabou em glória

As primárias do PS deram uma nova esperança a um sistema envelhecido e cianótico.

Eis uma bela ironia do destino que ainda não foi devidamente salientada: António Costa venceu António José Seguro na noite de domingo com a mesma percentagem com que Seguro tinha vencido Francisco Assis em Julho de 2011: 68% contra 32%. E, no entanto, o entusiasmo que rodeou cada uma dessas vitórias não poderia ser mais díspar. É o milagre das primárias: aquilo a que tantos fizeram cara de enjoado – “oh, horror, ataques pessoais!” – conseguiu, de facto, dar gravidade ao confronto político, atrair a atenção de todos e oferecer à contagem dos votos um clima de noite eleitoral.

Só por isso, Costa deveria ter enviado flores e beijinhos a Seguro. Se é certo que as primárias nasceram para o desgastar e atrasar o processo de sucessão, a verdade é que Seguro acabou por lhe prestar um enorme favor. O varapau com que se quis defender de Costa foi o bastão que o entronizou. Sem primárias, jamais ele teria ganho tamanha legitimidade. Seguro venceu em 2011 com menos de 24 mil votos. Costa venceu no domingo com quase 120 mil. Cinco vezes mais. Nós, comentadores, adoramos dizer que tudo o que se passa na política portuguesa do século XXI já se passava na do século XIX. Não é assim: as primárias do PS deram uma nova esperança a um sistema envelhecido e cianótico.

A partir do momento em que o PS conseguiu 250 mil inscritos e 175 mil votantes, o objectivo principal foi atingido: mobilizar um elevado número de simpatizantes para uma eleição partidária. Muitos dirão: não foi assim tanta gente. Eu digo: só podem estar a gozar. O processo era inédito, foi desencadeado à pressa e construído em cima do joelho de Jorge Coelho (bom joelho – aguentou excelentemente o peso da responsabilidade). Se houve um milhão de pessoas a votar no PS nas últimas europeias, como é que mobilizar um quarto desse número para umas primárias pode ser desvalorizado? Não pode. E o efeito deste feito é imediato: moralização automática do sistema, na medida em que pagar quotas a militantes falecidos ou que se acumulam às dúzias num T1 da Reboleira passou a ser mau negócio.

Há quem lacrimeje: terrível processo, que desvaloriza ainda mais os partidos e fulaniza a política. Mas eu gostaria de saber em que altura da História, portuguesa ou mundial, os partidos políticos foram mais valorizados do que as pessoas que os dirigiam. A política é, sempre foi e sempre será uma actividade fulanizada. É por isso que António José Seguro levou uma sova no domingo, apesar da indistinção de programas eleitorais. E por amor de Deus: ao fim de 40 anos de Bloco Central e de políticas públicas onde é impossível fazer distinções ideológicas entre PS e PSD, já é tempo de perceber que os governos se diferenciam, sobretudo, pelas características pessoais dos seus líderes, muito mais do que por quaisquer programas eleitorais – que, dez vezes em cada nove, são sepultados no caixote do lixo ao lado da mesa de mogno onde o seu autor jura cumprir o dever que lhe foi confiado.

Eu não quero com isto dizer que os programas não devam contar para nada. Claro que devem, e cada vez mais. Aliás, se António Costa ainda sonha com uma maioria absoluta, lançar cravos e escrevinhar uma Agenda para a Década não chega – o que a malta quer ver é a agenda para 2016. Mas, por ser o melhor socialista disponível no mercado, a enorme vitória de Costa só pode ser uma boa notícia para o país. Veja-se o meu caso: com Seguro, eu seria obrigado a votar PSD. Agora, pelo menos, já me posso dar ao supremo luxo de votar em ninguém.

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