A tentação do imediato e do efémero

O tempo talvez esteja propício a excitações, mas é dever dos principais responsáveis políticos não as confundir com a solidez de convicções.

Uma estranha mistura de marxismo analítico, populismo retórico e neokeynesianismo económico parece estar a tomar conta de uma parte significativa da esquerda europeia. A vitória do Syriza suscitou arrebatamentos inesperados em sectores e personalidades que extravasam largamente o espaço político tradicionalmente identificado com a esquerda mais extremista.

Não foram, aliás, poucas as vozes que enalteceram tal sucesso antevendo-o como a nova encarnação política da social-democracia do século XXI. Quase trinta anos depois da derrocada do muro de Berlim e da desagregação do mundo soviético, a própria ideia comunista parece suscitar um renovado interesse aos olhos de quantos vêem na desigualdade o grande mal contemporâneo. Os teóricos e os políticos que se inscrevem numa linha de orientação marcadamente antiliberal são recebidos por públicos ansiosos como verdadeiras rock stars investidas de capacidades quase demiúrgicas.

Por seu turno, a esquerda que recusa fazer do anticapitalismo um programa, que procura permanecer fiel a uma herança liberal e que rejeita a adesão a um discurso tendencialmente messiânico é violentamente atacada e colocada sob suspeita de traição doutrinária. O despudor com que se reescreve a história recente remete mesmo para o plano da falsificação pura e simples. Sintomaticamente, assistimos à revalorização de pensadores que declaradamente contestam a supremacia da democracia representativa e apelam à construção de modelos de participação política não muito distantes do velho vanguardismo bolchevique. Um filósofo de inegável talento, Alan Badiou, reclama explicitamente a adesão a uma nova utopia comunista, opondo desde logo Rousseau a Voltaire com o que isso significa de desvalorização de uma tradição individualista, tão cara à esquerda moderada da Europa.

Em Espanha, o Podemos, movimento político fundado e dirigido por um grupo de cientistas políticos dotados de elevado poder comunicacional e portadores de um discurso assente na contraposição maniqueísta entre o povo e a designada “casta”, prepara-se para obter um bom resultado eleitoral. Neste caso, a contestação das opções mais centristas, identificadas com os interesses e as referências de algumas elites políticas, económicas e tecnocráticas, conduz a uma radical afirmação da superação da dicotomia clássica esquerda-direita, em nome de uma abordagem pós-ideológica onde as categorias da moral sobrelevam os conceitos políticos. Apesar disso, subsiste um fundo marcadamente crítico face ao mercado e aos modos de representação política característicos das democracias liberais. Pablo Iglesias, um homem inteligente e afável, inquestionavelmente provido de carisma, consegue encher praças e pavilhões por todo o lado.

Perante acontecimentos desta dimensão importa desenvolver alguma reflexão crítica. Porque chegámos até aqui? Uma parte da resposta parece-me óbvia: as democracias pressupõem um determinado nível de coesão social, já que se inspiram no valor referencial da igualdade. Quando seja como resultado de avanços tecnológicos produtores de desintegração social, seja como consequência de um processo de globalização gerador de alguma anomia, se degradam os vínculos cívicos e se acentuam as desigualdades de condições e de estatutos, os extremismos propendem a crescer. Podem adquirir a forma conservadora de comunitarismos tribais ou nacionalistas, ou a expressão de um messianismo igualitarista de perfil colectivista. Em qualquer dos casos verifica-se o sacrifício daquilo que poderemos designar como a civilização liberal.

O que já não parece tão óbvio é o outro lado possível da resposta a esta questão: o mundo ocidental parece dominado pelo medo, pela recusa obstinada do risco, pela adesão infantil a uma representação mágica da realidade. Curiosamente, para isso contribuiu a associação entre um capitalismo desregulado, uma muito narcisista noção de emancipação e uma presença do ente público um pouco desresponsabilizante. O resultado patológico desta mistura está bem à vista: entre o indivíduo e a multidão parece só haver lugar para o espectáculo da denúncia, para a declamação de princípios simplistas e para a reclamação de direitos e interesses insuficientemente preocupados com o primado do bem público. Não é de estranhar que floresçam soluções em que o simplismo conceptual é directamente proporcional à capacidade de sedução emotiva.

Vejamos, a este propósito, a forma como se processou a recepção da vitória do Syriza entre nós. Se nuns casos se valorizou a derrota do projecto europeu, noutros pretendeu-se ler a demonstração da falência das economias sociais de mercado, e noutros ainda descortinou-se o alvorecer de uma esperança pós-liberal; no limite, prognosticou-se a antecâmara da instauração de um modelo radicalmente diferente de organização política, económica e social. Estou em crer que o Syriza não vai ser nada disso e poderá mesmo vir a integrar-se no consenso democrático-liberal que, em seu nome, tantos agora vilipendiam. O que importa, porém, é ter em consideração a natureza das reacções suscitadas, nomeadamente nalguns sectores do próprio Partido Socialista. Nessa perspectiva, a demonização do PASOK, que alguns levaram a cabo com uma leviandade assustadora, constitui um sinal deveras inquietante.

Na verdade, seria trágico para o país que uma parte do Partido Socialista se afastasse de uma linha até aqui historicamente prevalecente, inscrita numa tradição de compromisso europeu, quer no plano doutrinário, quer no âmbito político. Essa linha não está morta e tem dado sinais de inequívoca vitalidade nos últimos meses. Esses sinais traduziram-se em importantes alterações de comportamento das principais instituições europeias, com reflexos positivos que se começam a perceber. Aqueles que descrêem das virtualidades deste caminho, e que preconizam a teoria do confronto a nível europeu, partem de uma avaliação errada da natureza política da Europa e enfermam de uma certa confusão doutrinária que nada auspicia de bom.

Perante tal situação, um só apelo deve ser feito: não sucumbamos à tentação do imediato e do efémero; permaneçamos fiéis a uma visão mais estruturada e de mais longo prazo da nossa vida colectiva. O tempo talvez esteja propício a excitações, mas é dever dos principais responsáveis políticos não as confundir com a solidez de convicções.

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