A solução não é a Comuna de Paris

Para aprovar o Orçamento do Estado, é preciso seguir as regras claras da democracia representativa.

Portugal prepara-se para entrar numa mudança de ciclo político. Em Janeiro, os eleitores portugueses vão eleger um novo Presidente da República, uma vez que o actual atingiu o limite de dois mandatos. Antes, em final de Setembro ou início de Outubro, elegerão também uma Assembleia da República, de onde sairá um novo Governo, que poderá renovar a maioria no poder formada por PSD e CDS ou dar origem a uma outra maioria liderada pelo PS, que pode governar sozinho ou entrar em acordos com outros partidos parlamentares.

A mudança de ciclo político dá-se num momento de ruptura no país. Após três anos em que o Estado e a política económica e financeira estiveram dependentes das orientações dos credores, que viabilizaram um empréstimo de 78 mil milhões de euros, sob condições inclusas no Memorando de Entendimento assinado por PS, PSD e CDS, há decisões e orientações estruturais e estruturantes que terão de ser tomadas pelo próximo Governo, seja ele quem for. Aliás, o próprio Presidente da República insistiu esta semana em lembrar o assunto durante a viagem que fez a Paris.

Daí que os dois próximos actos eleitorais provoquem um entusiasmo maior, para mais quando é grande o desgaste causado pelo empobrecimento da sociedade portuguesa pelos três anos de intervenção dos credores. Ora, o descontentamento político que existe em Portugal tem levado muitos cidadãos a procurarem formas de participação na busca de soluções políticas.

Essa participação tem originado movimentos de cidadãos ao longo destes anos, bem como originou já novos partidos, de que o Livre e o PDR são o exemplo mais conhecido. E aqui está a diferença central que é preciso ter em conta no que toca à participação política no novo ciclo. É que a democracia, como ela está organizada hoje em dia, só existe como sistema representativo através da manifestação do voto universal na escolha das opções de governação. E estas escolhas só podem ser feitas através do voto em partidos.

É para isso que alertava, de forma certeira e concisa, a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa e antiga deputada Helena Roseta na intervenção que fez no dia 13 de Março no Congresso da Cidadania, que publicou depois, no domingo, como artigo de opinião no PÚBLICO. "A participação (...) não substitui a democracia representativa, antes deve complementá-la, o que, em Portugal, é muito difícil", defendeu Roseta. E acrescentou: "A participação não pode esgotar-se no próprio acto de participar. Não basta encher a Net de petições e abaixo-assinados, ou o Facebook de likes. É preciso passar do ecrã para as ruas e das ruas para as urnas. E é preciso, quando se consegue aceder a um cargo político eleito, ser capaz de fazer a diferença e de fazer diferente."

A questão de fundo que se coloca na política portuguesa é esta, a de ser capaz de ter propostas e soluções verdadeiramente diferentes, além de um discurso inovador, e a capacidade de as concretizar através das estruturas de representação política democrática que são os partidos, quer através das forças partidárias que existem, quer através de formações novas. E esta realidade cria alguns problemas que não são fáceis de contornar.

Os partidos tradicionais em Portugal são estruturas pesadas e rígidas que muitas vezes resistem a contributos vindos de fora; mesmo quando simulam que estão abertos aos cidadãos e quando incluem independentes nas listas eleitorais, essa abertura é muitas vezes decorativa. Mas também é verdade que a própria forma de funcionamento dos partidos dificulta a abertura. Os partidos são estruturas hierarquizadas, com cadeias de comando, sobretudo quando exercem o poder.

Por muito interessante que seja a tentativa de valorizar assembleias participativas, a concretização desta ideia não resolve tudo. Por mais que os partidos introduzam regras de abertura a todos os cidadãos, como as eleições primárias, por mais que procurem levar a elaboração e a aprovação de programas eleitorais a assembleias de cidadãos e não apenas de militantes, o facto é que não se governa a ouvir os cidadãos nas escadarias de São Bento — governa-se com os deputados eleitos à Assembleia da República. Mesmo quando se introduz mudanças, como os chamados "orçamentos participativos" nos municípios, o que é facto é que as decisões relevantes e a aprovação dos orçamentos camarários cabem às assembleias municipais.

Parece ser muito romântico, para alguns, a memória histórica reconstruída e mitificada das assembleias populares da Comuna de Paris — momento de que teóricos da esquerda de hoje, como Antonio Negri, tanto gostam. A verdade é que, para aprovar o Orçamento do Estado, que permite fazer funcionar a sociedade, é preciso seguir as regras claras da democracia representativa. Em política, ainda não se inventou a quadratura do círculo.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários