A representação política na era da Troika

A profunda crise da representação política não é só portuguesa, é europeia e têm fortíssimas raízes europeias.

No âmbito do projeto do CIES-IUL “Eleições, Liderança e Responsabilização”, patrocinado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia do MEC), pela AR (Assembleia da República), pela DGAI-MAI (Direção Geral da Administração Interna do MAI) e pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), demos recentemente à estampa o primeiro livro da pesquisa em português: André Freire, Marco Lisi & José Manuel Leite Viegas (eds.), (2015), Crise Económica, Políticas de Austeridade e Representação Política, Lisboa, Coleção Parlamento. Como este estudo resulta de uma estreita colaboração não só com todas as entidades patrocinadoras mas também com a Presidência do Parlamento, o staff da AR e, por último mas não menos importante, com todos os grupos parlamentares e todos os deputados que participaram nos nossos inquéritos e entrevistas, achámos por bem começar por devolver o estudo aos protagonistas políticos mais diretamente visados no mesmo. Assim, convidámos para uma apresentação do livro os deputados Mónica Ferro (PSD), António Rodrigues (PSD), José Ribeiro e Castro (CDS-PP), José Magalhães (PS), Rita Rato (PCP) e Pedro Filipe Soares (BE). A todas as entidades patrocinadoras, aos grupos parlamentares e aos indivíduos (nomeadamente os deputados e deputadas) que nos apoiaram queria deixar aqui um vivo agradecimento público. Não é possível descrever num pequeno artigo um livro com cerca de 500 páginas (mas apenas a preço de custo, vantagem da edição da AR), 19 capítulos e 26 autores (nacionais e estrangeiros). Por isso, salientarei os resultados que, pessoalmente, reputo mais relevantes.

O livro está dividido em seis partes. Na primeira, há dois capítulos, um pelos organizadores da obra sobre a teorização subjacente ao conjunto da publicação, “A gestão política das crises, os mandatos dos governos e a representação política”, e outro sobre os dados, “Procedimentos de recolha e tratamento de dados no estudo da representação política”. Note-se que este projeto, na senda de outro que o antecedeu, assenta (entre outros inúmeros dados secundários) num conjunto de vários inquéritos aos deputados (2008, 2009-2010 e 2012-13), aos candidatos a deputados (eleições 2009 e 2011) e aos eleitores (2008 e 2012). A segunda parte do livro versa sobre as “perceções e narrativas da crise”, na literatura económica, nos mass media, entre os candidatos em campanha, e entre os negociadores do memorando com a Troika e aqueles que depois se encarregaram de o aplicar e rever sucessivamente. A terceira parte, “As reações populares à crise”, versa sobre as respostas cidadãs à crise, em Portugal (em comparação com a restante Europa) e na Grécia, nomeadamente sobre petições, sobre contactos com políticos, abaixo-assinados, manifestações, greves, campanhas, etc. A quarta e a quinta partes versam sobre “A crise económica e as atitudes perante a democracia” e “as orientações ideológicas de eleitos e eleitores, antes e depois da crise”, respetivamente. O livro finaliza com o “recrutamento parlamentar, antes e depois da crise, causas e consequências”.

Passo a relevar as principais conclusões, agrupadas em dois blocos. Um primeiro bloco versa sobre aquilo que eu poderia designar como “as boas notícias”, o lado positivo da crise, se quiserem. As boas novas dizem respeito à participação política dos cidadãos e foram, de algum modo, relevadas na apresentação do livro pela deputada Mónica Ferro e problematizadas pelo deputado António Rodrigues. Ou seja, segundo vários inquéritos (que não apenas os do projeto referenciados acima) os vários estudos no livro sobre a participação política dos portugueses demonstram três coisas fundamentais. Primeiro, os níveis de participação política dos portugueses continuam bastante baixos quando comparados com os dos cidadãos dos restantes países europeus, aproximando-nos em regra mais de certos países da Europa pós comunista do que dos mais elevados níveis na Europa Ocidental. Segundo, apesar disso, a participação política dos portugueses aumentou bastante durante o período da crise. Terceiro, além dos tradicionais fatores explicativos há dois que vale a pena relevar: o efeito positivo da crise económica, pois perceções negativas da crise espoletaram maior participação política, e o efeito negativo da (falta de) responsividade dos políticos perante os eleitores, pois as avaliações negativas do sistema político ou, dito de outro modo, da capacidade do sistema em responder às demandas dos cidadãos geraram maior apatia. O lado positivo do aumento da participação é especialmente visível no domínio das petições apresentadas ao Parlamento: elas não só cresceram bastante durante a crise, acentuando tendências anteriores, como o seu crescimento estará também relacionado com a crescente eficácia e celeridade do Parlamento em responder às mesmas. Ou seja, estes dados sobre petições parecem também reiterar o que se disse atrás: uma maior responsividade do sistema político às demandas dos cidadãos potencia uma maior participação destes na polis.

Passemos agora às notícias menos boas. Em primeiro lugar, temos uma governação sem mandato político porque assente num violação reiterada, sistemática e profunda de várias promessas eleitorais fundamentais, e em que os governantes “se esconderam” atrás da Troika para fazer passar medidas não sufragadas nas urnas e que dificilmente passariam nessa arena eleitoral. Claro que, como sublinhou o deputado António Rodrigues problematizando esta conclusão, poderíamos argumentar que a direita no poder foi surpreendida com contas muito mais deterioradas do que estava previsto no memorando original da Troika e teve, por isso, de fazer sucessivas e profundas revisões ao acordo para se cumprir o objetivo primeiro, pagar as contas aos credores e equilibrar as contas. É de certo modo verdade. Porém, há quatro elementos centrais que minam esta tese. Primeiro, as contas estão hoje muito mais deterioradas do que no em 2010, nomeadamente em termos do ratio da dívida pública face ao PIB (cerca de 130% para cerca de 90%). Segundo, a avaliação esmagadora dos cidadãos inquiridos, que são a ultima ratio de julgamento político numa democracia representativa, é a de que a situação extraordinária vivida na era da Troika não justifica tal violação de compromissos eleitorais. Terceiro, na mesma linha, sublinha-se a forte assimetria na austeridade o que por si mesmo evidencia a não inevitabilidade da violação das promessas. Em segundo lugar, tivemos um sistema político mais polarizado mas apenas ao nível das elites e não dos eleitores, com o PSD a mover-se muito mais para a direita (segundo as perceções dos eleitores), e a afastar-se significativamente dos seus constituintes (bastante mais centristas do que o partido), e a esquerda (PS, BE e PCP/CDU) a mover-se mais para a esquerda e a afastar-se também dos respetivos constituintes, embora divergindo do seu eleitorado no sentido oposto ao do PSD. Ou seja, maior polarização ao nível dos partidos/das elites parlamentares mas não dos eleitores, basicamente estáveis em termos de grandes orientações ideológicas quanto ao papel do Estado e do mercado, e, portanto, maior incongruência entre eleitos e eleitores. Em terceiro lugar, temos uma oposição (de esquerda) incapaz de se aproximar entre si para formar uma oposição e uma alternativa (plurais) à direita no poder, situação que ilustra mais uma divergência entre as elites (incapazes de se entenderem) e as preferências dos seus constituintes (os eleitores das esquerdas defendem maioritariamente entendimentos à esquerda). Resultado global, aliás sublinhado pelo deputado José Ribeiro e Castro na apresentação: erosão fortíssima da satisfação com a democracia e da confiança nos políticos; forte crescimento do euroceticismo. Mas, perguntava pertinentemente o deputado José Magalhães, afinal qual é a raiz disto tudo? Não há dúvida que não abordamos isso diretamente do livro, até porque a profunda crise da representação política não é só portuguesa, é europeia e têm fortíssimas raízes europeias (além naturalmente das causas domésticas). Voltarei a este tema em próxima crónica, até porque abordámos demoradamente o assunto num outro livro coletivo também recentemente dado à estampa (O Futuro da Representação Política Democrática, Lisboa, Nova Vega, 2015) e de que em breve também darei conta aqui.

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL, andre.freire@meo.pt

 

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