A propósito do livro Austeridade, Democracia e Autoritarismo, de André Freire

A ameaça à democracia portuguesa é, em larga medida, uma ameaça que se estende a toda a Europa, cujas instituições transnacionais parecem mais comprometidas com os anseios do mercado do que com os de seus cidadãos.

Austeridade, Democracia e Autoritarismo, lançado em Portugal pela Nova Vega em 2014, é o mais recente livro de André Freire, Professor Auxiliar no ISCTE - IUL (Instituto Universitário de Lisboa). O trabalho consiste em uma compilação de artigos, publicados desde finais de 2007 no periódico português PÚBLICO, onde o autor é colunista desde março do mesmo ano.

Não obstante, embora não tenham sido conectados a posteriori por excertos narrativos, mantendo-se fiéis ao seu caráter conjuntural, o fio condutor dos textos reunidos no livro é evidente e partilhado também por outras obras do autor. Afinal, Freire tem se dedicado a escrever uma série de trabalhos sobre o estado da arte da democracia portuguesa. Dentre eles podemos citar: Representação Política em Portugal; Crônicas Políticas Heterodoxas; Para uma Melhoria da Representação Política (os três saíram em 2010, pela Sextante Editora); Comportamento Eleitoral e Atitudes Políticas dos Portugueses e Esquerda e Direita na Política Européia (publicados, respectivamente, em 2007 e 2006, pela Imprensa de Ciências Sociais).

Observando o título dessas obras, salta à vista como objeto preferencial as dinâmicas políticas que configuram a democracia portuguesa, em especial no que diz respeito aos possíveis obstáculos interpostos nos canais que vinculam Estado e Sociedade Civil. Tais canais, forjados por meio de mecanismos representativos responsáveis por estabelecer a conexão entre representantes e representados, têm sua capacidade atrelada ao devido funcionamento do sistema eleitoral e partidário. Por acreditar na importância de um vínculo representativo – que transcenda a virtualidade burkeana e a autorização hobbesiana, traduzindo-se em uma efetiva correia de transmissão entre as vontades da população e as políticas públicas adotadas pelo governo – o autor se dedica prioritariamente a analisar o desempenho de ambos sistemas, denunciando seus problemas e propondo-lhes soluções.

Para isso, ele recorre a comparações, inserindo o caso português na conjuntura europeia, de forma a conferir suas conclusões acerca do funcionamento das instituições democráticas em uma perspectiva abrangente, que transcende as fronteiras nacionais. A ameaça à democracia portuguesa é, em larga medida, uma ameaça que se estende a toda a Europa, cujas instituições transnacionais parecem mais comprometidas com os anseios do mercado do que com os de seus cidadãos.

Essa é a proposta da crítica, desenvolvida em Austeridade, Democracia e Autoritarismo, acerca do comportamento das elites políticas nacionais frente ao imperativos da Troika, alheios à vontade daqueles com quem se supõe um vínculo representativo: os cidadãos. Como relata o autor em sua introdução, o livro recebeu preliminarmente o título Governação Austeritéria, pois um dos principais argumentos desenvolvidos ao longo do texto diz respeito à hipótese de que este panorama se configura como uma ameaça aos princípios de legitimidade que estruturam os sistemas políticos modernos em torno da efetividade da representação. Sob esta perspectiva, é o déficit democrático que caracteriza a recepção das medidas de austeridades propostas no contexto da crise financeira internacional, que emerge no fim da primeira década do século XXI.

Nesta medida, a desvinculação entre as medidas adotadas e os compromissos contraídos com os cidadãos no momento das eleições são justificadas pela alegação de ausência de alternativas, perante imperativos externos alheios a vontade dos atores políticos no poder. Aqui soa deveras pertinente a recuperação de A Troika como janela de oportunidade e a falácia de um PS alinhado à direita, artigo de Freire veiculado no PÚBLICO em 27/07/2013 e inserido no livro em questão. No texto, o autor apresenta a hipótese de que a crise internacional e as recomendações da Troika podem ser lidas como uma excelente janela de oportunidade para implementar um projeto neoliberal, à revelia dos anseios de uma população amplamente favorável ao Estado social, na qual a esquerda moderada e radical atinge votações expressivas.

Entretanto, se por um lado este tipo de violação "reiterada e transversal aos diferentes partidos mina a confiança dos eleitores nos eleitos e, no limite, na própria democracia”; por outro, é fundamental considerar a ressalva do autor de que esse descompasso entre representantes e representados não é algo inédito na história portuguesa – ainda que se sobressaia em virtude da extensão, profundidade e gravidade das medidas adotadas. Segundo Freire, o sistema político do país teria algumas singularidades que dificultam a representação dos interesses de parte considerável dos eleitores, sobretudo, daqueles que votam em partidos de esquerda radical ou de extrema esquerda.

A crítica do autor, porém, não se limita às fronteiras portuguesas. A dificuldade no estabelecimento de coligações de esquerda, afeta também o Parlamento Europeu, abrindo espaço para os atores políticos comprometidos com princípios neoliberais que representam o interesse do capital, mas são alheios à vontade da maioria da população do continente. Consequentemente, o maior entrave à democracia na Europa “é consubstanciado pela capitulação da democracia, da política, da vontade soberana dos povos, perante os mercados de capitais" (Freire, 2014, p.143).

Como é possível observar, o chamado do autor para a importância de uma convergência das esquerdas tem como objetivo diminuir a distância entre as decisões do governo e a preferência dos eleitores, que teria facilitado a adoção de medidas alheias a sua vontade. Nesta medida, a ameaça à democracia ressaltada pelas investidas neoliberais da Troika, frente a um Estado de bem estar admirado e desejado pelos portugueses, também pode ser explicada por fatores que transcendem a esses imperativos externos, radicados no funcionamento do próprio sistema partidário e eleitoral do país. São estes fatores o objeto preferencial das intervenções de André Freire, servindo, portanto, como fio condutor não apenas para os textos reunidos em Austeridade, Democracia e Autoritarismo, mas, como elo que conecta o livro ao restante de sua obra.

Professora de Teoria Política e Política Internacional da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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