A passeata de Marcelo

Marcelo não tem todas as posições ao mesmo tempo – tem apenas uma de cada vez, e utiliza aquela que em cada momento lhe dá mais jeito.

Eu percebo a frustração dos adversários de Marcelo: pensavam que se tinham inscrito para uma corrida presidencial de primeiro mandato e estão a descobrir que entraram numa corrida de segundo. É como se os portugueses considerassem que Marcelo já exerceu o seu primeiro mandato e respectiva “magistratura de influência” aos domingos à noite na televisão, reservando-lhe o tratamento consensual que é próprio oferecer aos presidentes reeleitos. Não é uma má interpretação: entre Marcelo e Cavaco, há dúvidas legítimas sobre qual deles mais influenciou, nos últimos anos, o rumo do país. Resta-nos, portanto, aguardar pacientemente que seja entronizado em Belém, após uma passeata que só por hábito, fastio e simpatia podemos classificar como campanha eleitoral.

Por muito que lhe apontemos contradições, traições e avarias, não há volta a dar: Marcelo tem qualidades únicas e é difícil não gostar dele. Esteja de férias no iate de Ricardo Salgado ou a comer febras na Festa do Avante, é sempre o mesmo Marcelo, é sempre divertido, é sempre inteligente e é sempre genuinamente simpático. Se eu não quisesse votar em Marcelo, penso que a minha mão direita o faria por mim. A idade fez-lhe bem, a barba mefistofélica esfumou-se, ganhou ar de avô bonacheirão, e parece menos cínico e manobrista do que antigamente. Vamos ser optimistas e admitir que está mesmo menos cínico e manobrista do que antigamente – mais equilibrado, mais ponderado e menos dado à intriga. É certo que teve alguns comentários lamentáveis durante a queda do BES, mas Marcelo é como o Blob, uma massa gelatinosa que absorve tudo à sua volta.

A velha piada de Groucho Marx – “estes são os meus princípios, e se não gostarem… bom, eu tenho outros” – aplica-se na perfeição às opiniões de Marcelo: foi tão longa e tão marcante a sua carreira de comentador que sobre toda a gente ele já disse bem e mal, já elogiou e já criticou, e sobre cada assunto já disse tudo e o seu contrário. Foi curioso ouvir Marisa Matias afirmar no debate entre ambos: “Acho que é incompatível ter todas as posições.” Mas não se trata bem de ter todas as posições. Marcelo não tem todas as posições ao mesmo tempo – tem apenas uma de cada vez, e utiliza aquela que em cada momento lhe dá mais jeito.

E o que lhe deu mais jeito durante toda a campanha eleitoral foi uma postura que cruza o rigor mortis com a hiperactividade – o que só mostra o quanto consegue ser criativo. Marcelo anda há meses a fingir-se de morto, mas é um morto que fala muito, que não pára de aparecer, de debater. A forma que ele arranjou para não dizer nada é não se calar, é lutar pela igualdade das candidaturas, é disponibilizar-se para dezenas de debates, com todos os candidatos e, se necessário, com os seus animais domésticos. É uma deserção por excesso, até ao ponto de os debates se transformarem numa espécie de sarampo televisivo, que infecta todos os canais mas dos quais não temos qualquer interesse em nos aproximarmos.

A multiplicação de confrontos, conjugada com o prodígio de a sua candidatura ao centro ter, ainda assim, nove candidatos à esquerda, foi a estratégia perfeita. Eu ainda me dei ao trabalho de assistir ao debate a dez na Antena 1 e só faltou Marcelo levar um livro para se entreter entre intervenções. Mas está bem assim. Basta ver como PS, PSD e CDS desertaram destas eleições. Está toda a gente feliz por não se estar a passar nada, não é? Parabéns, senhor Presidente.

Sugerir correcção
Ler 17 comentários