A obstinação pró-europeísta de António Costa

O pragmatismo só constitui um mal se se dissociar da referência a um projecto; pelo contrário, deve ser visto como uma virtude, se for percebido como uma condição imprescindível para o sucesso a prazo de uma determinada linha de orientação ideológica.

1. Há uns anos um membro do comité central do Partido Comunista chinês foi confrontado com a seguinte questão: o que pensava ele da Revolução Francesa e do seu impacto na história? Ao que rezam as crónicas, o dirigente comunista terá respondido prontamente: “Seria da minha parte um acto de grande precipitação pronunciar-me de forma definitiva sobre um acontecimento que ocorreu há apenas 200 anos.” Esta hipotética sabedoria oriental é impraticável no mundo ocidental. Por isso mesmo, a última semana ficou marcada por análises, considerações e celebrações relativas à passagem do primeiro ano de existência da insólita solução governativo-parlamentar presentemente em vigor. Como na altura da sua génese me pronunciei enfaticamente desfavorável à respectiva concretização, sinto-me compelido a formular uma apreciação sobre este primeiro ano de vida da coligação parlamentar estabelecida entre o Partido Socialista e os partidos da extrema-esquerda.

Recordo-me bem das palavras que proferi na reunião da comissão política nacional do PS que aprovou o entendimento com o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda. Depois de ter apresentado as razões da minha posição crítica, terminei dizendo mais ou menos o seguinte, e permitam-me, por razões óbvias, que cometa a deselegância de me citar a mim próprio: “Não podendo manifestar a mais ligeira crença nos méritos de uma coligação que se me afigura contranatura, resta-me apenas confiar no talento e nas qualidades políticas do António Costa.” Confesso que optei por esta formulação final por razões que relevavam mais da afectividade do que da racionalidade. Não que nalgum momento tivesse duvidado das qualidades políticas do primeiro-ministro, mas seria um acto de grande estultícia admitir que o talento individual poderia contrariar os malefícios de um acordo político manifestamente contrário ao interesse do país. António Costa não desiludiu ao longo do ano que corre. É um homem inteligente, movido pela fidelidade a convicções profundas e absolutamente empenhado em garantir o sucesso de um conjunto de princípios e valores que constituem a razão de ser de toda a sua intervenção pública. Justamente porque é essa a ideia que tenho de António Costa, repugnam-me as considerações de todos quantos, procurando elogiá-lo, nele mais não vêem do que um político habilidoso, um pragmático pouco preocupado com a coerência programática, quando não mesmo um equilibrista circense exclusivamente empenhado em não sofrer uma queda abrupta e dolorosa. Causa-me especial repulsa a circunstância de na maior parte das vezes estas falsas características serem elevadas à categoria de veneráveis qualidades.

Ao longo deste último ano — e digo-o com o à-vontade de quem esteve e permanece contra esta solução governativa — António Costa revelou uma indisponibilidade absoluta para ceder numa questão fundamental: o nosso compromisso europeu. Nisso ele foi inflexível. Se o país hoje está em condições de apresentar um défice orçamental abaixo dos famigerados 3%, com todas as consequências daí resultantes (na minha opinião amplamente positivas), tal deve-se em grande parte à obstinação pró-europeísta do primeiro-ministro. Em nome dessa obstinação, e a meu ver bem, o Governo prepara-se para acabar o ano com resultados que contrariam radicalmente as suas previsões inaugurais. Seria fácil, mas não seria sério, chamar a atenção para as óbvias contradições entre aquilo que se proclamava e o que agora se constata. O pragmatismo só constitui um mal se se dissociar da referência a um projecto; pelo contrário, deve ser visto como uma virtude, se for percebido como uma condição imprescindível para o sucesso a prazo de uma determinada linha de orientação ideológica.

Há um ano, o que nos prometia a então imberbe coligação? Um crescimento económico vigoroso, alicerçado num aumento significativo do consumo privado e do investimento público, com consequência automáticas e muito favoráveis nos valores do défice orçamental e da dívida pública. Algumas vozes um pouco mais excitadas advogavam entusiasticamente a opção por um confronto homérico com as pérfidas instituições europeias e propugnavam a adopção sem reservas daquilo que, com alguma facilidade linguística, designavam por uma política keynesiana pura e dura.

Há um ano, aquando de uma entrevista dada à RTP, afirmei que o PS deveria ter feito outra opção: assumir-se como um grande partido de oposição empenhado em construir uma alternativa a prazo que deveria passar por um entendimento com os sectores mais abertos do Bloco de Esquerda. Continuo a pensar exactamente o mesmo, mas confesso que fico satisfeito por ter verificado que o primeiro-ministro até hoje não cedeu em aspectos essenciais.

2. O Presidente da República não se deve deixar entusiasmar excessivamente com a popularidade a que se alcandorou, e, a meu ver, deve procurar agir como uma síntese entre o professor Marcelo que a televisão popularizou e o professor Rebelo de Sousa que as instituições reclamam. A transmutação da política numa espécie de orgia afectiva em nada favorece a saúde do espaço público democrático-liberal.

3. O proclamado príncipe herdeiro de António Costa, o meu jovem amigo Pedro Nuno Santos, referiu-se a Portugal como uma ilha de tranquilidade navegando algures no tormentoso mundo em que vivemos. Já houve tempos, não muito distantes, em que a partir do poder se produzia exactamente o mesmo discurso. Não, meu caro Pedro Nuno, não somos uma ilha e, como o futuro próximo se encarregará de te fazer saber, não estamos condenados à tranquilidade dos povos felizes sem história. E ainda bem que não estamos.

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