A Moral da Desobediência

O jornal El Pais publicou uma notícia intitulada “Cuando la oposición son los jueces” tendo por argumento que em Portugal são as decisões do Tribunal Constitucional que põem um travão continuado às reformas e aos cortes propostas pelo Governo.

Esse é um bom título jornalístico mas também é um bom ponto de partida para compreender o que há a esperar dos cidadãos em termos de protesto e desobediência na sociedade em rede – que no fim de contas é a sociedade em que vivemos.

Porque as empresas, o Estado, as organizações e associações desde há década e meia se têm vindo a dotar de computadores ligados em rede, porque mais de 90% dos cidadãos têm telemóveis e porque já mais de 50% da população portuguesa está ligada à Internet, a lógica de organização em rede tem vindo a moldar não só as nossas relações de poder, como a vida familiar, o trabalho e o empreendedorismo.

Essas são apenas algumas das razões pelas quais a nossa sociedade é uma sociedade onde a maior parte do que é importante para nós se desenrola em rede e onde apenas aquilo que é menos importante tende a manter-se inalterado nas suas lógicas hierárquicas, pouco flexíveis e pouco readaptáveis a qualquer mudança.

Mas o facto de vivermos numa sociedade em rede molda também a nossa forma de actuar perante a injustiça, o tipo de protesto e, mais importante, a nossa percepção de quando é que é justo desobedecer a todos os tipos de poder.

A desobediência à lei é um terreno tabu para as instituições do poder democrático – sejam elas os partidos, parlamentos, governos, presidentes, sindicatos ou tribunais. A razão do tabu é simples, em democracia as leis são justas porque são produto da deliberação, da negociação, dos consensos possíveis. Logo, não faz sentido desobedecer às leis, não há moral na desobediência. Mas o protesto em democracia existe e a desobediência acontece quando tem de acontecer – o que é o mesmo que dizer que quando há injustiça há protesto e que quando se retira margem de mudança há desobediência.

Como refere Douzinas no seu recente livro Philosophy and Resistance in the Crisis, é a percepção de extrema injustiça, radicada numa série de humilhações sucessivas, que exaure a tolerância moral de uma sociedade e leva à desobediência. Pois, como bem sabemos, as humilhações também podem ser sociais, ao radicar nas leis, e não apenas nos comportamentos individuais.

Sabemos que nas sociedades democráticas os conflitos entre moral e lei são normalmente resolvidos em favor da lei. Mas o dever de obedecer à lei é absoluto apenas quando acompanhado pelo livre pensamento de que a lei é moralmente correcta e democraticamente legítima.

A moralidade e a legalidade são duas faces da mesma moeda. Quando a lei coloca em causa a nossa concepção de bem é a nossa própria autonomia que é colocada em causa e a desobediência à lei torna-se moral.

As nossas sociedades precisam de ser autónomas para serem democráticas. E, por isso, não podem ser as instituições da democracia a destruir a noção de que as leis, cuja origem está sempre nos cidadãos, não podem ser postas em causa e mudadas por si próprios.

Quando a liberdade de mudar uma injustiça moral legislada é vista como impossível, então a desobediencia deixa de ser ilegal e torna-se numa resposta moral e cívica às incapacidades governativas de criar alternativas à disrupção da vida em grupo ou à deficiente regulação social.

Sabemos hoje, pela experiência na primeira pessoa nas praças e ruas, ou indirectamente pela televisão, que os protestos na sociedade em rede (a nossa sociedade) estão, como sempre estiveram, ligados à forte percepção de injustiça e que o uso de telemóveis, da Internet são características da organização informal contemporâneas, seja ela presencial ou em rede.

Mas há mais duas dimensões que devemos ter em atenção se queremos compreender as desobediências em gestação nas mentes dos cidadãos dos diferentes países da Europa, Américas, Ásia e África. Elas são, respectivamente, a desobediência individual simbólica, ou seja aquela praticada pelos analistas de informação, e a desobediência em rede quer nas administrações públicas quer nas administrações privadas em detrimento de outros tipos de protesto como as greves.

Os analistas de informação como Bradley Manning com a divulgação para o Wikileaks de informação sobre a Guerra do Iraque, Afeganistão e Diplomacia Norte Americanas; Edward Snowden com a denúncia e divulgação de documentos da NSA ou ainda ex-empregados do sector bancário suíço com a divulgação de contas de clientes em processo de evasão fiscal, constituem um exemplo do poder do individuo com acesso à informação e como a sua percepção de injustiça pode marcar as sociedades.

Mas as redes não são apenas as que lidam com a análise de informação e iremos, porventura, assistir ao poder dos “gestores” noutros contextos de rede (das informáticas às financeiras, das eléctricas às de tráfego e águas) e à sua capacidade para mostrar publicamente, através da desobediência, o seu desagrado e repulsa pelas injustiças percebidas à sua volta na sociedade. E se tal nos parece ainda algo descabido, será muito provavelmente porque ainda não temos exemplos públicos para dar nomes a pessoas e actos e menos porque o julguemos impossível de acontecer.

Em sociedades onde o valor social da greve é desvalorizado pelos governos e onde uma grande parte da conflitualidade está transposta para as questões do trabalho e da remuneração do mesmo (impostos, salários, reformas, benefícios na saúde, precariedade, etc.) a natural evolução do protesto é a desobediência quer nas administrações públicas, quer no domínio das empresas privadas.

Esta é a evolução “natural” porque a percepção do funcionamento em rede da sociedade e das organizações é cada vez mais intuída pelos indivíduos e também porque, à medida que a informatização avança nos processos, pode ser mais fácil controlá-los mas também é mais fácil bloqueá-los.

Regressando ao início deste artigo, a importância da existência de tribunais constitucionais e dos seus equivalentes nos diferentes países democráticos resulta de os mesmos serem, através das suas interpretações das leis fundamentais, um último anteparo antes da desobediência generalizada perante leis aprovadas em sistemas democráticos mas percebidas, pela generalidade de indivíduos, como moralmente injustas.

Na sociedade em rede, a desobediência individual inspirada na percepção da injustiça moral do funcionamento das instituições democráticas é algo que já interiorizámos como possível e assumindo uma certa normalidade no contributo para a mudança institucional. Mas a desobediência colectiva parece cada vez mais afigurar-se como um caminho possível nos contextos em que vivemos estejam as nossas democracias em crise ou crescimento económico, isto porque a injustiça nada tem a ver com a riqueza produzida mas sim com a sua distribuição, uso e objectivos.

Como Douzinas sugere, no contexto actual das sociedades democráticas importa hoje ainda mais preservar as tradições liberais depois do seu progressivo abandono pelos liberais contemporâneos.

Gustavo Cardoso é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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