A mesma nação, o mesmo primeiro-ministro, dois discursos diferentes

Em 2012, Passos Coelho tinha muito melhor opinião do Tribunal Constitucional. Dramatizava a crise, mas propunha-se enfrentá-la cheio de voluntarismo. O discurso de 2013, num momento em que outra crise irrompera no próprio Governo, já foi sobretudo defensivo.

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Passos Coelho com Vítor Gaspar e Paulo Portas no Parlamento: rectificativo chega hoje aos deputados DANIEL ROCHA

Foram muito diferentes os discursos que o primeiro-ministro levou aos dois debates sobre o estado da Nação em que participou – em 2011 o debate não se realizou, por o Governo ter acabado de tomar posse.

As diferenças entre esses discursos resultam mais dos momentos políticos em que ocorreram – o de 2013 coincidiu com a quase ruptura da coligação governamental e posterior intervenção do Presidente da República – do que propriamente de mudanças de posição de Pedro Passos Coelho.

Nesse aspecto, apenas as referências ao Tribunal Constitucional (TC) no discurso de 2012 parecem datadas, a avaliar pelas intervenções posteriores do também líder do PSD e de outros dirigentes do partido. A 11 de Julho de 2012, Passos Coelho referiu-ao ao TC - que nesse mês chumbara os cortes nos subsídios de férias e de Natal, admitindo, contudo, que valessem para aquele ano – como “o órgão que no nosso Estado de Direito faz a interpretação soberana da Constituição”. E prometeu medidas alternativas, que respeitassem, “sem ambiguidades a letra o espírito da decisão” do TC, que então lhe pareciam fáceis de interpretar. “Serão (…) encontradas medidas que sirvam o mesmo objectivo orçamental e que cumpram os requisitos determinados pelo Tribunal Constitucional. Além disso, tudo faremos para que sejam menos penalizadoras para os portugueses (…) e minimizaremos o impacto geral sobre a economia que elas possam ter”, dizia o governante, como se visse na decisão do TC uma oportunidade para fazer melhor.

A primeira metade desse discurso de Passos foi dedicada àquilo que, posteriormente, se convencionou chamar a “narrativa” da crise, a explicação sobre a forma como Portugal chegou à necessidade de auxílio financeiro externo. O primeiro-ministro não poupou nas cores, sombrias, com que descreveu a situação. “Momento excepcionalmente sério”, “crise grave” e “perigos”, foram alguns dos termos que escolheu para descrever uma conjuntura que via a ameaçar irreversivelmente “o modo de vida” dos portugueses, o “Estado Social”, as aspirações dos cidadãos “como pessoas e como povo”.

Tudo isso foi atribuído aos erros de governação cometidos “durante anos” – e não necessariamente nos últimos, de Sócrates. “Os défices, a dívida, as necessidades de financiamento [externo] foram crescendo sem fim à vista”, disse. Resumiu o ano anterior como um período em que o Governo fora obrigado a responder a uma “emergência financeira em condições progressivamente mais adversas”, referindo-se ao alastrar da crise do euro e ao buraco nas contas da Madeira descoberto já depois do pedido de auxílio.

Daí partiu para uma sucessão de tiradas que sugeriam determinação e para recados para a Europa de sentido equivalente ao da frase “aprendemos a lição”, que Cavaco Silva empregou há dias, com polémica. “Temos de continuar a dar um exemplo à Europa e podemos dizer-lhe que somos capazes de vencer as dificuldades e que assumimos todas as responsabilidades de sermos um povo livre, que se governa a si mesmo”.

Passos congratulou-se com o aumento das exportações, com a recuperação da “credibilidade internacional” e só lamentou a progressão do desemprego. “Foi mais gravosa do que inicialmente se anteviu, (…) precisamos de combatê-lo mais eficazmente”.

O discurso de 2013 já foi substancialmente diferente, como era diferente o ambiente político. Desde Janeiro que as coisas não corriam bem ao Governo e à coligação PSD/CDS. A crise da TSU já ficara para trás, (Setembro de 2012), mas agora havia gente a cantar a Grândola por todo o lado, o ministro Miguel Relvas, embrulhado na polémica da licenciatura, acabara por se demitir, o TC chumbara os cortes nas pensões e subsídios de férias e de Natal e as taxas a implicar aos subsídios de doença e desemprego.

O ministro das Finanças, Vitor Gaspar demitiu-se, Paulo Portas anunciou idêntica decisão, que era para ser “irrevogável” e, dois dias antes do debate sobre o estado da Nação, o Presidente da República surpreende tudo e todos com a solução que engendrara: um compromisso de salvação nacional assente em eleições legislativas antecipadas em Junho de 2014; apoio dos três partidos subscritores do acordo com a troika ao Governo em funções e àquele que saísse das legislativas antecipadas.

Assim, o debate do estado da Nação de 2013 foi sobretudo o debate da crise política que emergira da crise económica, num cenário em que troikas de PS, PSD e CDS se desdobravam em negociações, sob o olhar impaciente da troika dos credores internacionais. No discurso que levou ao Parlamento, Passos respondeu numa entrelinha a Cavaco: “A coligação que suporta o Governo goza de ampla maioria parlamentar”; “o Governo (…) tem cumprido”. Ou seja: não, não concordava com legislativas em Junho de 2014.

Num discurso defensivo, observou que o Governo tinha recursos limitados, dependia das avaliações da troika, tinha uma margem de manobra escassa e que, ainda assim, tinha conseguido renegociar juros e prazos.

Mas a intervenção mais forte deste debate foi mesmo a de Paulo Portas, a confirmar que se dispunha a sacrificar a “reputação”, revogando a demissão irrevogável, em nome do interesse nacional. Nessa altura, a proposta de reorganização do Governo, com o líder do CDS promovido a vice-primeiro-ministro, já fora apresentada a Belém.

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