A Lei da Reorganização Administrativa não pode ser um dogma

Presidente da Associação Nacional de Freguesias (Anafre) coloca nas mãos do novo Governo, liderado por António Costa, avaliar se vai ser preciso uma nova Lei das Finanças Locais.

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Guilherme Marques

Pedro Cegonho, de 37 anos, assume-se como um defensor acérrimo da regionalização. Formado em Direito, o socialista, que preside à Anafre desde 2014, considera que a Lei da Reorganização Administrativa se esgotou a ela própria no movimento de agregação de freguesias que se fez e considera que o Parlamento deve dar passos no sentido de permitir que onde existam situações que devam ser corrigidas o sejam, mas de uma forma descentralizada. O também presidente da Junta de Freguesia de Campo do Ourique assume que as freguesias acabaram por ser, e também em certa medida os municípios, o cordeiro sacrificado das reformas do anterior Executivo.

O Governo de António Costa pode ser mais sensível às propostas da Anafre?
Este novo governo tem dois grandes indicadores que me levam a estar com uma grande expectativa e a acreditar muito que vamos caminhar num pendor bastante descentralizador no que toca à atitude ao poder local. O facto do actual primeiro-ministro ter sido autarca e de conhecer os constrangimentos que os autarcas vivem, o facto do ministro que tutela a área [Eduardo Cabrita] ser uma pessoa com uma ampla experiência no âmbito das autarquias locais e da área financeira ligadas às autarquias e ainda a circunstância de termos um secretário de Estado das Autarquias Locais [Carlos Miguel], que é um decano das autarquias locais, são bons indicadores de que vamos ter um governo muito receptivo às propostas da Anafre.

O poder local precisa de uma nova lei que reformule os mecanismos das transferências do Orçamento do Estado para as autarquias?
Nós temos essas duas componentes. Há uma componente de reforço de financiamento e há uma componente de reformulação no sentido de tornar mais justa a distribuição das receitas do Estado que estão acometidas às freguesias. Nesta área das finanças locais o que é importante é que se reconheça, em primeiro lugar, que é necessário que a Lei das Finanças Locais não seja letra morta. Quando temos uma LFC ela tem que ter uma tradução no seu cumprimento anual através dos Orçamentos do Estado a não ser que exista uma situação sobremaneira excepcional.

O que está a dizer é que a lei é para ser cumprida?
Sim. Mais do que discutirmos percentagens, o importante era que os recursos que já estão acometidos ao Fundo de Financiamento das Freguesias [FFF] fossem esgotados nas freguesias, porque daquilo que nós temos tido é que em sequência de várias normais excepcionais, OE a OE, o fundo que já de si representa menos de 0,13/0,15% do OE acaba por não esgotar tudo o que corresponde a 2,5% da média aritmética dos impostos que estão acometidos às receitas para as freguesias.

Por que é que isso acontece?
Porque existe e bem um mecanismo travão que impede que existam oscilações nos orçamentos das freguesias de mais ou menos 5% anual.

O que é que a Anafre propõe?
Devemos melhorar a fórmula de distribuição horizontal do fundo de forma a compensar aquilo que têm sido as reduções anteriores por causa destes travões e que também permite esgotar ao máximo aquilo que ano a ano se venha a apurar que são receitas do próprio fundo. Já temos propostas.

E quando é que vão ser apresentadas?
Assim que o Governo esteja em condições de discutir o orçamento. Temos vários cenários para esta fórmula.

As propostas implicam uma nova Lei das Finanças Locais?
Caberá ao Governo analisar se isso implica uma reformulação geral da lei ou não. Mas queremos introduzir um aspecto renovador e esse aí implica remexer a lei. Este aspecto inovador é: quando existe superavit do total do fundo face ao aquilo que é aplicado por forma da distribuição horizontal, nós entendemos que esse superavit devia ser redistribuído numa segunda volta por forma a não ficar no OE, mas sim ser disturbado pelas freguesias. E já temos vários cenários que queremos apresentar ao Governo.

E propõem exactamente o quê?
O que propomos é que se encontre uma forma para uma segunda volta de distribuição mas que não seja distribuído por via dos factores: território, população e tipologia para não agravar e encontrarmos outros critérios igualmente mensuráveis e fiáveis (índice de desenvolvimento humano, taxa de desempego, números de edifícios). Podemos combinar uma segunda forma que permita redistribuir este saldo que fica no orçamento por forma a compensar as freguesias a que lhes é atingido o travão dos 5% e que nunca conseguem chegar perto daquilo que seria justo. Esta segunda nossa proposta de haver uma segunda volta que esgote a totalidade do fundo obriga a uma alteração à lei, se é uma nova lei na íntegra ou se é uma alteração cirúrgica isso fica para o legislador.

Partilha da opinião de muitos autarcas que dizem que o poder local foi desconsiderado pelo anterior governo?
A Anafre foi muito corajosa na forma como discutiu e como se opôs à reforma administrativa, por exemplo, e às várias alterações legislativas que se foram sucedendo na última legislatura desde 2011. Nós acabamos por ser, e também em certa medida os municípios, o cordeiro sacrificado. Foi fácil fazer perceber à troika que as freguesias não geravam dívida pública e que além de não gerarem dívida pública tinham uma dimensão no OE completamente irrelevante. Nesse sentido foi um bocadinho de reforma para troika ver.

Faltou coragem ao anterior Governo para estender a reforma aos municípios?
Se calhar não, mas se calhar nalgumas cabeças o poder local era algo que devia ser dominado, contido. Quando se tem dúvidas sobre a autonomia do poder local muito facilmente se resvala para este tipo de iniciativas e é um facto que nós nos últimos anos vimos aparecer um conjunto de normas profundamente burocráticas limitadoras da acção das freguesias e dos municípios sem qualquer tipo de implicação prática naquilo que é importante. Há um conjunto de normas que tratam de forma igual aquilo que é diferente - não se pode tratar a Câmara de Lisboa como se trata uma junta de freguesia no distrito de Bragança -, mas há muitas normas que se aplicam de igual forma em todo o lado. Perdeu-se esta noção do universo do poder local.

A reforma administrativa foi muito contestada. O que é que é preciso corrigir?
Isso é um trabalho que o Governo vai ter de fazer: avaliar o que foi feito e permitir as correcções. O que é importante é não termos uma visão preconceituosa para o futuro em nenhum dos sentidos. Houve um conjunto de freguesias que foram agregadas - deram origem a cerca de 800 freguesias agregadas.

Foi feito um estudo pela Universidade do Minho…
Do ponto de vista da gestão do território pelas novas entidades administrativas, os questionários que foram feitos revelam que cerca de 41% das freguesias agregadas dizem que a agregação não trouxe nenhuma realidade novo, mas também não trouxe nenhum aspecto negativo que os impossibilitasse do exercício das suas competências. Há cerca de 29% das entidades agregadas que dizem que a gestão e organização melhorou com a agregação e com a capacidade dos meios instalados para as suas populações, mas continuamos a ter um conjunto de 31% dizem que esta organização não está adaptada àquilo que é o seu território. Isto significa que há situações que têm que ser corrigidas. Não podemos estar num dogma de que a Lei da Reorganização Administrativa foi aplicada em 2013 e agora é assim ad eterno e não se mexe.

Está a dizer que a lei se esgotou a ela própria?
A lei esgotou-se a ela própria no movimento de agregações que se fez. Não deixou um quadro enquadrador geral e abstracto que nos permitisse despoletar correcções para o futuro. O que defendemos é que o novo Parlamento deve dar passos no sentido de permitir que onde existam situações que devam ser corrigidas elas o sejam, mas de uma forma descentralizada. Não vamos cometer um segundo erro que é o de voltar a reunir uma comissão na AR que diz quem é que vai desagregar ou quem é que vai agregar mais ou lado ou quem é que fica como está e aplicar a todo o país e ao mesmo tempo em todo o lado. Essa nunca será a verdadeira solução.

O que é que defende?
Um quadro normativo que permita criar um processo de decisão descentralizada que respeite a vontade das populações e dos autarcas que tenha em conta aquilo que foram as pronúncias desfavoráveis no passado e que apesar delas a agregação avançou, mas que deixem o impulso inicial dessa reforma nas autarquias de forma descentralizada.

Está a defender a reabertura do processo?
Propomos que se faça a reabertura do processo por forma a permitir que quem não quer continuar com as agregações possa ter uma solução alternativa.

E o Governo estará disponível?
No fundo é dar a possibilidade de poder desfazer agregações, mas também de criar novas e construir um modelo diferente com a pedra de toque na descentralização do processo que entendemos que é fundamental. Tendo em conta o programa eleitoral o PS, que se irá traduzir no programa do Governo, julgo que estará prevista essa avaliação e a existência desses novos mecanismos.

É a favor da regionalização?
Sou um fervoroso adepto da regionalização. Esse é o pilar que nos falta. Muita da avaliação que fazemos quer do ponto de vista da reorganização do território, quer do ponto de vista da distribuição e competências pelos vários níveis de decisão, a não existência da regionalização causa-nos muita inércia e muita perda de energia e de recursos por não se encontrar o patamar certo onde colocar determinada capacidade de decisão e de gestão. Há um conjunto de áreas vasto, seja da saúde, seja da educação, seja da distribuição dos recursos que tenham a ver com os fundos comunitários e o país só tinha a ganhar com a existência desse patamar.

O governo terá coragem política para avançar com a regionalização?
A minha opinião é que se deve começar a caminhar nesse sentido. Considero que é importante o caminho que o PS propôs de dotar de autonomia democrática as actuais comissões de coordenação e desenvolvimento regional tendo em vista a construção desse novo patamar decisório intermédio [regionalização] entre o Estado central e os municípios. Mais do que discutir mapas, é nós comprovarmos que a existência daquele nível intermédio de poder é mais eficiente e traz para as populações novas oportunidades e vai reequilibrar esta coesão entre o litoral e o interior.

Quanto é que se economizou com a reorganização administrativa. Nove milhões de euros?
Isso é uma falácia, não é significativo. Em muitos sítios hipotecou-se a resolução e o apoio a populações mais desfavorecidas, mais isoladas. Não digo que não pudesse existir uma reforma ou uma reorganização, Lisboa fê-lo e com sucesso, agora tem é de haver possibilidade de casos que não estejam bem resolvidos do ponto de vista do território e da população possam ser ajustados.

Concorda com a reversão da fusão do sistema de abastecimento de água “em alta” como defende o Governo?
Tudo aquilo que destabilize o justo valor que a população suporta em face daquilo que são os custos reais com o sistema que cada serviço municipalizado deve ser contrariado. Este tipo de serviços são serviços estratégicos e estruturantes do Estado e, portanto, não devem ser privatizados.

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