A insustentável ambiguidade europeia do Governo Costa

Existe uma desproporção abissal entre o destaque que António Costa dá aos assuntos europeus no seu discurso e a prestação do Governo e dele próprio nessa matéria.

1. É imperioso verificar que existe uma desproporção abissal entre o destaque que António Costa dá aos assuntos europeus no seu discurso e a prestação do Governo e dele próprio nessa matéria. Até ao momento, ainda não se viu alinhada uma única ideia ou proposta sobre os temas que verdadeiramente preenchem a agenda europeia e, por conseguinte, a “política europeia” dos Governos nacionais. O Primeiro-Ministro refugia-se em “slogans” do género de que os socialistas portugueses são os campeões da “Europa” e o Ministro dos Negócios Estrangeiros anda pura e simplesmente desaparecido. Para começar, não houve até agora uma única pronúncia sobre o que se deseja e sobre o que se espera do desenvolvimento da união económica e monetária. Este é talvez o tema prioritário para Portugal, mas antolha-se evidente que um Governo suportado por um partido convictamente anti-europeu como o Partido Comunista e por um partido assumidamente hostil à concepção europeia de economia social de mercado como o Bloco de Esquerda não chegará facilmente a um consenso sobre a estratégia nacional para a Zona Euro.

2. Só agora, com a ferida aberta com a Comissão Europeia a propósito do esquiço de orçamento, Costa balbuciou qualquer coisa, ainda assim para tentar atabalhoadamente qualificar divergências políticas fundamentais como meros desacertos e desencontros técnicos. A questão não é técnica, nem tecnocrática, nem sequer quanto aos contornos do chamado défice estrutural. As mexidas na massa salarial da função pública ou nos pagamentos da segurança social são e serão sempre, em qualquer Estado, indicadores estruturais. No caso, os cortes, mesmo que temporários, prolongavam-se por vários exercícios orçamentais e só podiam ser levantados mediante substituição gradual do seu impacto. O que significa que, por mais malabarismos e contorcionismos que o Governo faça, estas medidas, oscilem para cima ou para baixo, contariam e contam sempre para a aferição do chamado défice estrutural. Como já disse várias vezes, o Governo não quer fazer uma leitura ou interpretação inteligente das regras europeias, mas sim e apenas uma leitura esperta. E é sabida a diferença entre uma atitude de inteligência e uma postura de esperteza: os espertos julgam que os outros são burros e os inteligentes contam sempre com a inteligência dos outros, mesmo quando estes não a têm. Ora, a última coisa de que o país precisava, nesta fase em que finalmente estávamos a recuperar, era de um Governo esperto, tão esperto que se julga demasiado esperto.

3. O deserto em matéria europeia é tal que não houve até ao momento um único contributo para o tópico mais urgente e relevante da conjuntura política da União que é a crise dos refugiados. Não subsistem dúvidas de que os próximos meses serão marcados pelas decisões europeias nesta área. É bem verdade que sendo este o mais ingente e problemático assunto em quase todos os países, ele não goza da mesma prioridade nem da mesma visibilidade em Portugal. Mas, até por isso, a nossa diplomacia está em condições de arbitrar divergências, de fazer pontes, de desempenhar um papel construtivo. De resto, a circunstância de não estarmos neste momento no epicentro da crise dos refugiados não significa que não venhamos a estar dentro de algum tempo. Na verdade, as projecções dos vários fóruns europeus apontam para uma deslocação da pressão migratória do sudeste europeu (fronteira Turquia/Grécia) para o Mediterrâneo (fronteira Líbia/Itália e eventualmente Marrocos/Espanha). Fontes credíveis apontam já para uma concentração de 4 milhões de deslocados em território líbio, provenientes da África subsariana. E é sabido que os migrantes da África negra terão muito mais atracção e apetência por Portugal do que os deslocados do Médio Oriente ou do Magrebe, atento o histórico do nosso país na região subsaariana. Tirando a Ministra da Administração Interna que ainda vai dizendo algo, embora só para consumo nacional, os restantes responsáveis remetem-se ao silêncio e nada dizem sobre a questão que mais encarniçadamente pode afectar a integração europeia.

4. Não menos espantosa é a omissão total do Governo português sobre a presente negociação entre o Reino Unido e a União Europeia. Ao contrário do que esta letargia deixa adivinhar, trata-se de um assunto verdadeiramente crucial para Portugal, a poucos dias ou horas de ter um epílogo. Uma possível saída da Grã-Bretanha teria efeitos geopolíticos muito significativos no equilíbrio interno da União. Se hoje nos queixamos da viragem da Europa para o centro e para o leste, que dizer de uma Europa sem os nossos velhos aliados britânicos? O Reino Unido é o contrapeso atlântico da União. Países como a Irlanda, a Holanda ou Portugal precisam, por razões várias e diferenciadas, deste contrapeso. O mesmo se diga, em menor grau, da Dinamarca e da Suécia. É evidente que países médios e pequenos, sem vocação continental e com apetência marítima, têm uma afinidade natural com o Reino Unido. Mesmo que a Velha Albion nada faça por nós e nos ignore sobranceiramente – como se viu no período de ajustamento –, a sua simples pertença à União tem, por si só e sem mais, um valor assinalável para Portugal. Que estejamos a assistir passivamente e sem uma posição estratégica conhecida ao desenrolar das negociações entre o Governo britânico e a União Europeia é simplesmente lamentável. Portugal, país tradicionalmente europeísta e atlantista, tem de ajudar o Governo inglês, e designadamente David Cameron, a manter o seu país no perímetro da União. Cura-se de matéria delicada e difícil, mas Portugal tem de saber de que lado deve estar. É nestas alturas que a ambiguidade do Governo Costa – feita de habilidade, esperteza e equilibrismo permanente – se torna profundamente insustentável.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários