A importância da coerência

Num ponto estamos todos de acordo: para nós, a nossa ideologia é sempre melhor do que a ideologia dos outros.

Num ponto estamos todos de acordo: para nós, a nossa ideologia é sempre melhor do que a ideologia dos outros. Se não fosse assim, não a escolhíamos como nossa e não acreditávamos nela. Este pressuposto básico a qualquer discussão política democrática não deve nunca pôr em causa um outro princípio — o de que assim como nós temos direito a ser respeitados nas nossas escolhas ideológicas, os outros têm direito a serem igualmente respeitados nas suas escolhas ideológicas.

Ora, Passos Coelho ao falar como líder da coligação parece ter-se esquecido destes dois princípios. E isso é uma forma manipulada de partir para um debate eleitoral — ou seja, considerando as escolhas ideológicas dos outros como "complexos ideológicos" e "utopias", enquanto as suas escolhas são "valores" e "crenças". A valorização do que são as suas posições, através da classificação depreciativa do que os outros defendem, é um modo de envenenar o que deve ser um saudável debate em que cada um "vende" no mercado eleitoral o seu projecto, com argumentação séria e sem recorrer a truques. As últimas intervenções do líder da Portugal à Frente indiciam, porém, que a táctica eleitoral que adoptou assenta em simplificações que desvalorizam os adversários e jogam com o medo dos eleitores, explorando a insegurança que foi criada pela perda de qualidade de vida nos últimos quatro anos (ver PÚBLICO 11/07/2015).

O que é facto é que o programa da coligação é inspirado e enquadrado por opções ideológicas, como não podia deixar de ser. Tão ideológicas como os programas das outras forças candidatas. E, em abono da coerência de Passos Coelho, há no programa eleitoral Agora Portugal Pode Mais uma coerente continuidade de raiz ideológica em relação ao que foi a governação nos últimos quatro anos. Aliás, de outro modo é que seria surpreendente, se os que governaram este quatro anos em maioria, de repente, dessem o dito por não dito e se arvorassem em alternativa a si mesmos. É de elogiar até a coerência, a continuidade e a falta de surpresas — embora, claro, essa continuidade seja agora povoada de aspectos novos e novos objectivos.

Assim destaca-se, por exemplo, que na continuidade da visão assistencialista das políticas sociais, que dominou a governação da maioria PSD-CDS, surge a proposta de um programa de desenvolvimento social que se propõe combater a pobreza e as desigualdades com políticas transversais e baseada em parcerias entre público e privado. Tal como há continuidade nas opções de introduzir liberdade de escolha dos cidadãos no recurso aos serviços do Estado social.

Ou ainda na visão do crescimento económico baseada na ideia de liberdade de mercado em que ao Estado cabe um papel de estar atento à regulação, mas sem interferir nas opções entre sectores da economia — ainda que fique claro da leitura do programa a aposta no papel do Estado enquanto fornecedor de condições para que o país seja competitivo.

É até surpreendente ler: "A nossa ambição é continuar a melhorar, tendo como objectivo de longo alcance que Portugal se torne uma das dez mais competitivas economias mundiais e que, no espaço da próxima legislatura, nos situemos no top 20 do Doing Business [do Banco Mundial] e no top 25 do [Global Competitiveness Report do] World Economic Forum." (p. 52) Um meritório objectivo e uma tarefa hercúlea numa economia globalizada e para um país sem estruturas produtivas nem capacidade de investimento próprio. Resta saber se essa competitividade não se fará à custa de mais diminuição do valor do trabalho.

O programa da coligação é assim um documento dentro do que era expectável e na continuidade da acção governativa — embora não deixe de conter disparates de antologia. Por exemplo, a seguinte passagem sobre política do mar: "Reiterar o compromisso com a execução da Estratégia Nacional para o Mar, na diversidade dos seus vários domínios, nomeadamente da valorização da pesca à promoção da aquacultura, da liderança na biotecnologia azul ou nas energias renováveis oceânicas à possibilidade de todos os alunos do ensino obrigatório obterem progressivamente a carta de marinheiro." (p. 64) Carta de marinheiro para os estudantes do ensino obrigatório? Para quê? É para os preparar para o risco de o país se afundar? Nesse caso não era melhor fornecer primeiro aulas de natação?

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