A falta de escrutínio em Portugal

Podemos, por vezes, ser injustos? Podemos, com certeza. Mas antes injustos do que medrosos, moles, mornos e monótonos.

Na semana passada escrevi neste espaço acerca de Sampaio da Nóvoa e da sua participação numa litigância em Oeiras, noticiada pelo semanário Sol, devido ao alargamento das instalações de um centro de apoio a doentes com paralisia cerebral.

Nas reacções a esse texto, uma percentagem de leitores superior ao habitual declarou que eu me tinha enganado no jornal e que deveria ir escrever para o Correio da Manhã, enquanto um respeitável amigo, cujas opiniões estimo (Luís Aguiar-Conraria), afirmou que o meu artigo era “quase inacreditável” – sendo que o advérbio “quase” só antecedia o adjectivo “inacreditável” por manifesta delicadeza e simpatia. De seguida, despachou o meu texto como “exemplo de parvoíces elevadas a artigo de opinião num dos jornais de referência”.

Os ataques àquele meu texto e a esta minha pessoa interessam-me, na medida em que eles reflectem um olhar radicalmente diferente do meu acerca dos males da sociedade portuguesa, da ideia de escrutínio e do papel dos jornalistas e dos colunistas no espaço público. O caso de Oeiras, em si, não é muito importante no sentido jurídico do termo – não há ali nada de legalmente condenável –, mas pareceu-me muito útil para definir alguns traços de personalidade de um candidato à presidência da República, sobretudo porque as justificações de Sampaio da Nóvoa estavam a milhas do tom adoptado nos seus discursos.

No entanto, muita gente parece entender a questão do escrutínio desta forma: se o tema em causa não é sequer vagamente ilegal, então não só não é notícia, como transformá-lo em notícia ou comentá-lo é um exemplo de “baixa política”. Ora, eu não posso estar mais em desacordo com esta visão do espaço público, que me parece duplamente errada. Errada, por um lado, porque pressupõe a tal visão legalista do papel jornalístico, quando o escrutínio de um político, sobretudo numa eleição unipessoal, é muito mais do que brincar aos polícias: implica saber o que fez, com quem fez, quais as suas opções de vida, de onde vem, que decisões tomou, grandes ou pequenas, na medida em que elas contribuam para traçar o perfil de quem se propõe ocupar o cargo mais elevado da nação.

E errada, por outro lado, porque pressupõe uma visão paternalista dos leitores e dos eleitores, que só deverão contactar com aquilo que nós, os homens de bom gosto, os frequentadores de jornais de referência, temos como importante – fora isso, convém mantê-los afastados de tudo aquilo que não tem a devida dignidade política, que isso é lixo para tablóide. Reparem que o meu texto não foi classificado como “insignificante”, “irrelevante” ou “desinteressante”. Foi classificado como “inacreditável”, como uma “parvoíce” indigna do PÚBLICO.

Muito boa gente continua a temer os excessos do escrutínio anglo-saxónico, quando o nível de escrutínio neste país é patético, e o que existe é soprado por adversários, em vez de nascer de autênticas investigações jornalísticas – é como temer os atropelamentos quando a roda ainda mal foi inventada. Mas o pior é que esta cultura receosa e com queda para o salamaleque dá legitimidade aos políticos para torcerem o nariz e fugirem a questões inteiramente legítimas – “tem alguma coisa contra mim para me estar a fazer essa pergunta, senhor jornalista?”. Ora, os jornais têm duas missões: informar o público e chatear os poderosos. E ambas são fundamentais. Podemos, por vezes, ser injustos? Podemos, com certeza. Mas antes injustos do que medrosos, moles, mornos e monótonos.

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