A face oculta da negociação à esquerda

Dizer que o empenho de António Costa em formar um governo apoiado pelo Bloco e pelo PCP carece de legitimidade política ou de legitimidade constitucional é uma bizarria; afirmar que o líder do PS regressou ao golpismo do PREC ou que está usurpar o poder à coligação é um disparate. Mas mesmo que a conformidade com o texto constitucional esteja garantida, a manobra de bastidores de António Costa justifica a sensação de que a democracia portuguesa se transformou numa trapaça feita à vista de todos. Qualquer governo do PS apoiado pelo Bloco e pelo PCP não escapará a este pecado original. É um nado-morto que ameaça arrasar a credibilidade que resta ao PS.

Para começar, é impossível não suspeitar que o que está a acontecer se funda numa mentira alimentada nos dias da campanha. O PS tinha todas as razões para suspeitar que a coligação não obteria uma maioria absoluta, mas nunca admitiu procurar uma alternativa de governo estável com a esquerda. Pelo contrário, quando Paulo Portas intensificou os seus alarmes sobre a possibilidade de uma aliança do PS com o Bloco e o PCP, António Costa e o seu estado-maior assobiaram para o lado e trataram de fazer a gestão dos danos no seu eleitorado mais moderado. Bem se sabe que o líder socialista foi recusando a ideia do “arco da governação”, mas para a maioria dos portugueses essa denúncia não passa de um estado de alma vago e filosófico. O mesmo não seria se Costa tivesse dito preto no branco: ‘Se a esquerda for maioritária no Parlamento, vamos procurar um acordo com o Bloco e o PCP para governar’.

O segundo factor que legitima a sensação de trapaça é a súbita mudança de tom do Bloco e do PCP em relação ao PS. É impossível não nos recordarmos que o PS foi para eles até ao dia 4 um partido ao serviço da direita, um prolongamento do capital alemão e da troika. Agora, num arremedo de voluntarismo e ambição, ambos procuram tapar o sol com uma peneira para dizer que é possível construir uma superfície contínua com triângulos, hexágonos e círculos. O Bloco vai calar-se e deixar de dizer, como dizia no seu programa eleitoral, que “só é possível inverter a política de austeridade rompendo com a lógica dos programas de ajustamento e do pacto de estabilidade”. E ninguém ouvirá o PCP dizer que “o programa eleitoral do PS e o respectivo cenário macro-económico confirmam a intenção convergente de prosseguirem, consolidarem e aprofundarem a regressão social, a exploração e o empobrecimento”, como o escreveu no seu programa.

Maria de Lurdes Rodrigues, ex-ministra socialista, escrevia ontem no PÚBLICO: “Defender que o PS não tem legitimidade para negociar com outras forças partidárias à sua esquerda, porque o seu eleitorado não lhe deu esse mandato, exige que se recorde que ninguém tem o dom de adivinhação das intenções dos eleitores”. Se assumirmos esta tese como verdadeira, tem de se admitir que a “intenção” dos eleitores aponta para uma coligação à esquerda. O que está longe de ser provável. O eleitorado do PS é por definição moderado e votou num programa prudente. Por acaso acredita Maria Lurdes Rodrigues que se o PS se apresentasse às eleições com o mandato de fazer um governo negociado com os partidos à sua esquerda teria 32.5% dos votos? Por acaso não lhe parece que uma boa parte, talvez até a maior parte dos 1.7 milhões de cidadãos que votaram no PS estão irritados com as negociações em curso?  

Com bases tão vulneráveis, se numa hipótese remota os três partidos sustentarem um governo o que virá a seguir vai ser muito feio. O PS não pode abdicar da disciplina financeira e o eleitorado do Bloco e do PCP cedo dará conta de que, afinal, o compromisso à esquerda não passou de uma ilusão. Depois, como é difícil entender por que razão António Costa, o perdedor, se transformou em Costa primeiro-ministro, um eventual governo de esquerda liderado pelo PS será o mais odiado desde a era de Vasco Gonçalves. Perante este colete-de-forças, um governo com esta génese e este ADN estará condenado a soçobrar.

A fuga para a frente baseada no improviso só pode correr mal, o que para esquerda pode significar um retrocesso de muitos anos. Num processo difícil como o que está a decorrer as sementes de entendimento só poderão germinar se as reuniões em curso servirem para quebrar o gelo e criar bases para futuros acordos. Assim, com prudência e sem ansiedade, talvez o Parlamento se reconfigure e se perceba que a partilha do poder não é uma prerrogativa natural do PSD e do CDS. Não se apagam 40 anos de divergências numa negociação imprevista, apressada e sujeita a ser avaliada pelos cidadãos como uma trapaça. Insistir nesta loucura será um acto de desespero muito em breve celebrado pelos principais visados da operação: o PSD e o CDS. 

 

2 – Rui Rio ficou fora das presidenciais. Porque se deu conta que já não havia ninguém com um resquício de importância política a implorar a sua candidatura; porque percebeu que o seu nome não iria suscitar uma vaga de fundo neste ingrato país; porque constatou que o seu capital político não basta para se bater com a popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa. Rio, como é evidente, não resistiu a tanta ingratidão e tratou de recordar que, nas presentes condições, não poderia reformar a justiça ou o jornalismo à luz dos seus supremos valores. E dedicou-se a censurar a liberdade de voto dada pela coligação aos seus militantes e a prometer que, com ele e ao contrário de Marcelo, haveria “sobriedade” na presidência e uma garantia maior de estabilidade neste sistema político-partidário meio tresloucado.

Ora, precisamente por muitas destas razões (as reformas que o iluminam e a urgência em eleger um presidente conciliador e dialogante), ainda bem que Rui Rio desistiu. Porque se há na política portuguesa um rosto que personifica a ideia do déspota iluminado, que despreza o confronto de ideias e a procura de consensos, esse rosto é o do ex-presidente da Câmara do Porto. Ele quer mudar a justiça e o jornalismo porque a justiça não decidiu como ele queria e porque os jornalistas não escreveram o que ele ditou. Entrou em conflitos com agentes culturais, com o futebol, com empresas que exigiam o cumprimento de direitos contratuais, enfim, com todos os que ousaram pensar pela sua cabeça. Estas características pessoais de Rui Rio são úteis em cargos executivos – pelo rigor, pela cultura de exigência, pela resistência a interesses. Na presidência, Rio seria um factor permanente de conflitos e de instabilidade. A sua desistência foi uma boa notícia.  

 

 

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