A esquerda para além do acordo

Numa eventual reconfiguração partidária, o PCP sabe que dificilmente a sua autonomia estará em causa.

oi imensa a expectativa sobre se o PCP assinava ou não um acordo de modo a viabilizar parlamentarmente um Governo minoritário do PS apoiado também pelo BE. As negociações desenrolaram-se ao longo de um mês e cedo se percebeu a existência de dois modos de fazer política e duas atitudes perante a gestão do tempo político. Se o BE vive o imediatismo e até a urgência da vida na net, o PCP tem ritmos e tempos de decisão menos virtuais e mais baseados na política do concreto, do esperar para ver as coisas acontecerem, sem queimar etapas. E esse tempo lento do PCP exponenciou a visibilidade da demora e da resistência dos comunistas em aceitar assinar um acordo e a cederem nas exigências, procurando assim dar a imagem de que fariam o PS ceder.

Foi o PCP quem assumiu desde o primeiro momento que o PS podia ser Governo e se mostrou aberto ao diálogo, surpreendendo o país. Mas os comunistas sempre foram claros sobre os limites da sua disponibilidade. Viabilizavam-no, opondo-se a uma moção de rejeição do programa de Governo socialista. Mas não se mostraram nunca abertos a aprovar o Orçamento de Estado para 2016, repetindo que nunca apoiaram medidas que considerem gravosas para os trabalhadores. E classificando sempre o programa do PS como de direita, o PCP deixou claro que preferia um Governo deste partido ao da coligação PSD-CDS.

Já o BE foi marcando o território e soltando para os jornais informação sobre as suas conquistas negociais. Com Catarina Martins a assumir, em entrevista ao DN para memória futura, que, pela parte que lhe cabia, o acordo estava assinado, mesmo que alguns dos conteúdos ainda não estivessem fechados. Dando a imagem de que tinham conseguido levar o PS aceitar uma série de reivindicações populares e sinalizado que se as negociações borregassem, o BE podia sempre dizer que não foi por sua causa, mas sim por causa dos comunistas.

Para além dos jogos de sombras entre o PCP e o BE, o sucesso da existência de acordo terá implicações que em muito extravasam o domínio do suporte parlamentar e da acção de um Governo, pelas consequências que a mera existência destas negociações trarão à vida partidária em geral. Num momento em que tudo indica que haverá acordo, importa dizer que mesmo que este falhe, a direcção socialista e o secretário-geral já não podiam voltar para trás, assim como a esquerda portuguesa não podia voltar ao dia 3 de Outubro. A porta aberta por António Costa não tem retorno. Há um tabu que se quebrou.

O processo que se iniciou com a decisão de Costa de aproveitar o resultado conjuntural da esquerda nas legislativas para transformar a sua derrota eleitoral no avançar por um caminho não trilhado e tentar ser primeiro-ministro através de um acordo de esquerda tem consequências que irão muito além do que é o tempo de vida de um Governo.

É verdade que o acordo que será assinado se anuncia frágil e que, segundo o que tem sido divulgado, se preocupa sobretudo com o aumento do rendimento das pessoas e não dá tanto enfase ao crescimento económico, mas é de admitir que as notícias sejam parciais. É também de admitir que se Costa foi indigitado primeiro-ministro - e essa decisão caberá a Cavaco Silva - pode conquistar uma vitória por maioria absoluta em próximas eleições, sobretudo se aprovar meia dúzia de medidas populares que rendam votos.

É certo que no PS, se o acordo falhar, a queda de António Costa poderá ser uma questão de tempo. Pode até significar a eleição de Assis e o regresso a um posicionamento ao centro. Mas a ala esquerda do PS ganhou um protagonismo, uma autonomia, uma visibilidade e um peso interno que não poderão ser apagados. A actual situação se correr mal a Costa pode até levar a que a esquerda do PS seja ostracizada dentro do partido por longos anos. E a fractura agora aberta no PS pode até levar a médio ou longo prazo a uma cisão e até a uma reconfiguração partidária à esquerda. Mas a importância simbólica destas negociações não será nem ignorada, nem inconsequente.

Numa eventual reconfiguração partidária, o PCP sabe que dificilmente a sua autonomia estará em causa. As rupturas internas que poderiam levar à sua fusão com outros, deram-se no PCP há duas décadas. E a natureza de classe do PCP não lhe permite fusões no actual contexto partidário.

Mas é natural que, na Soeiro Pereira Gomes, todas as vertentes tenham sido equacionadas para que a direcção comunista decida se assina um acordo e qual. Para mais quando esta questão divide o partido. Mas, por mais que este acordo possa ser um incómodo para o PCP, os comunistas sabem que pelo rumo que os próprios quiseram que as negociações tomassem, o ónus de não haver acordo recairia sobre si. Assim como sabem que, no futuro quando o acordo falhar, as consequências sobre os partidos envolvidos, nomeadamente os custos eleitorais, atingirão todos eles por longo tempo.

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