A difícil moderação

O erro básico de António Guerreiro consiste em não perceber que a moderação pode convocar uma boa dose de radicalismo na sua própria elaboração e defesa.

"Vós sabeis o que eu penso da violência, para mim ela é moral, perfeitamente moral, muito mais moral do que os compromissos ou as transacções". Assim falava Mussolini em 1925, num congresso fascista. O ditador italiano nunca escondeu a admiração por George Sorel, o mais genuíno intérprete do romantismo da violência.

Sorel desprezava o humanitarismo, a moderação, as virtudes racionais que condenavam as democracias ao insucesso e confiava apenas na brutalidade como meio para garantir a regeneração de sociedades decadentes. A paz, fosse entre as classes ou entre os povos, gerava inevitavelmente a mediocridade e a baixeza. Nessa valorização da violência havia um impulso estético que o levaria mesmo a afirmar que "o sublime está morto na burguesia e esta está condenada a nunca mais ter moral". Por isso mesmo ele vituperava aqueles que, reclamando-se do socialismo democrático, se predispunham a exercer funções parlamentares na esperança de resolver os problemas legalmente; um deputado socialista seria sempre um ser desprezível já que só no extremismo absoluto se poderia agir com grandeza.

François Furet considerava que o fascismo e o comunismo tinham em comum o ódio à burguesia e a tudo o que ela significava. Daí resultava a desvalorização do indivíduo, a exaltação da ruptura violenta − com o consentâneo sacrifício da ideia de compromisso −, a vituperação de toda e qualquer forma de moderação. Basta lembrar como o movimento leninista tratou o reformismo social-democrata no plano social e político, ou como a ortodoxia marxista perseguiu o pensamento liberal em certos redutos culturais e universitários, para termos uma noção muito clara do que representava essa intolerância sectária e dogmática.

Num texto constante de uma colectânea de crónicas e artigos, Mitologias (1957), Roland Barthes, a propósito de certa crítica literária que preconizava que a crítica não deveria ser nem reaccionária, nem comunista, nem gratuita, nem política, elaborou o interessante conceito da mecânica da dupla exclusão, que considerou ser uma expressão do pensamento pequeno-burguês. O crítico "nem-nem" procuraria auto-atribuir-se o estatuto de árbitro imponderável dotado de uma superioridade ideal. Seria uma espécie de anjo transcendental, recolhido numa redoma asséptica e reclamando um insuportável estatuto de supremacia moral. Essa pretensa superioridade assentava numa base muito débil − na recusa de uma tomada de posição, na rejeição de qualquer forma de determinação concreta. O anjo transcendental estaria para o mundo das ideias e das opções doutrinárias como um eunuco estaria para o domínio da sexualidade. O "nem-nem" seria a negação da escolha, do risco, do próprio desejo.

Nesse mesmo texto, Barthes afirma a dado passo algo de inquestionavelmente verdadeiro e actual: "segundo um velho procedimento terrorista (não escapa ao terrorismo quem quer), nós julgamos ao mesmo tempo que nomeamos". A enunciação pode ser uma forma de acusação. A nomeação quase nunca é axiologicamente neutra.

António Guerreiro sabe muito bem que assim é; e por sabê-lo recorreu precisamente a este texto, e a estas categorias barthesianas, no seu último artigo publicado no suplemento “Ípsilon” (6/03/2015) para tentar desqualificar a “moderação centrista” que vislumbrou no meu texto “Nem mais alemães que os alemães, nem mais gregos que os gregos” (Público, 26/02/2015), considerando-a aliás paradigmática de um modelo de discurso político que classifica como “editorialismo jornalístico”, produto, segundo ele, de uma certa elite consensual. A sua tese é simples e tem o mérito de uma relativa clareza: o elogio da moderação e o apelo ao compromisso representam uma forma medíocre e oportunista de filistinismo desprovida de qualquer capacidade transformadora e destinada à satisfação das exigências de uma mediania artificialmente concebida. A tese é simples, tão simples que não esconde o seu simplismo. Ela parte de um pressuposto errado − a de que só o homo agonisticus pode ser politicamente livre e criativo. Levada ao extremo, esta concepção desagua num enaltecimento acrítico da conflitualidade, da polarização destemperada, do confronto insusceptível de qualquer forma de mediação. A desvalorização da temperança, do justo meio-termo, da ideia de consenso, acaba por conduzir à afirmação do primado da violência. É como se entre o terror jacobino ou as demoníacas manifestações fascistas do século XX não houvesse nem tempo, nem espaço, para um outro horizonte de possibilidades. Só que houve, e esse horizonte tem um nome − civilização democrática e liberal. Não há democracia liberal sem vontade de enfrentar os extremismos e, nessa perspectiva, a construção do consenso é uma tarefa bem mais árdua do que a proclamação retórica de uma ambição revolucionária. O erro básico de António Guerreiro consiste em não perceber que a moderação pode convocar uma boa dose de radicalismo na sua própria elaboração e defesa, já que ela não exclui a tensão e a fricção nem tão pouco pode ignorar a importância dos antagonismos.

Nenhuma outra civilização (e uso este conceito de um modo particular mas que considero útil na presente discussão) se revelou historicamente tão fecunda no que diz respeito à produção de direitos humanos formais e reais como a civilização democrático-liberal. Ela permitiu sobretudo um profundo alargamento do horizonte de possibilidades individuais em detrimento de delirantes utopias colectivas. Quando, com uma inesperada arrogância, António Guerreiro acusa aqueles que se situam numa tradição de centro-esquerda de serem incapazes da adopção de um qualquer gesto político não rotineiro ou da antecipação de um pequeníssimo mundo possível, revela uma insuficiência mais profunda do seu pensamento político − confunde aspectos fundamentais da herança democrático-liberal com a simples adesão ao senso comum, entendido este, nas suas palavras, como "vontade de maioria e de conformidade", como se nessa conformidade não estivesse a condição necessária para a projecção de uma infinidade de inconformismos individuais.

Quando António Guerreiro me acusa, e àqueles que pensam como eu, de renunciar à intenção de perturbar quem quer que seja, está-se a esquecer dele mesmo e daqueles que pensam como ele. Também aí não há modéstia, pelo contrário: há uma dose exuberante de pretensiosismo político. Aliás, nos tempos que correm, o que é difícil, o que implica uma vontade séria de resistir ao presente e impõe uma predisposição para enfrentar muitas incompreensões, não é a adesão aos extremismos, é antes a opção por uma certa ideia de moderação. Basta ler este jornal todos os dias para perceber isso mesmo.

Estou cada vez mais convencido de que a Europa e Portugal precisam de um entendimento sério entre o centro-esquerda e o centro-direita. Outros pensam legitimamente de outra forma. Não podem ter é a pretensão de se arrogarem uma superioridade moral ou intelectual sobre quem discorda deles. Até nisso o mundo democrático-liberal tem uma enorme vantagem: a vantagem da tolerância. Pudessem outros mundos e outros sistemas reclamar tal virtude. Não podem.

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