A detenção de Sócrates é um caso político

A sombra que este caso lança sobre o PS afecta pessoalmente António Costa.

1. Os políticos encontraram rapidamente a fórmula para evitar comentar a detenção de José Sócrates e as acusações que impendem sobre ele de branqueamento de capitais, fraude fiscal e corrupção. Invocando a “separação de poderes”, todos acharam por bem repetir que “à justiça cabe o que é da justiça e à política o que é da política”, não fazer comentários sobre este caso específico e fazer votos de que a justiça siga o seu curso sem perturbações.

A contenção é de louvar, até porque não se conhecem ainda as acusações concretas, muito menos os indícios que levaram o Ministério Público a acusar o ex-primeiro-ministro e menos ainda a eventual defesa de Sócrates. Mas há uma coisa que é inegável: este caso pertence à política, é muito mais um caso político do que um caso judicial e está a ter e vai ter um impacto político considerável. Não porque José Sócrates seja um político e um ex-governante ou um ex-primeiro-ministro. Se Sócrates fosse acusado de violência doméstica ou de contrabando de droga, essas acusações poderiam ser absolutamente independentes da sua acção política. Mas a acusação que é feita a Sócrates é de corrupção no exercício de cargos políticos — as outras acusações decorrem desta — e nada poderia ser mais político do que isso.

Uma das razões para tentar separar a política deste caso judicial é o desejo de proteger o mal-afamado nome da política. Mas, por esta ordem de ideias, qualquer crime cometido por um político no exercício de funções políticas, através de instrumentos a que tivesse acesso na sua qualidade de político, fossem quais fossem os prejuízos causados em bens públicos, nunca seria da ordem da política porque, sendo um crime, seria da ordem da justiça. O raciocínio sugere uma ideia imaculada da política e não faz sentido.

2. A detenção de Sócrates é um caso político. O que não significa que deva ser comentada levianamente e que não deva haver uma enorme prudência nas afirmações produzidas, devido à presunção de inocência a que todos os arguidos têm direito.

Alguns órgãos de comunicação fizeram investigações próprias e, baseados nos factos que consideram ter provado, afirmam que “Sócrates fez” isto ou aquilo. Trata-se de um risco que querem correr e apostam nisso a sua reputação. Mas um órgão de comunicação que não possua investigação própria para sustentar afirmações desse tipo tem de ter o cuidado de não as fazer e de não tratar as acusações como se se tratasse de factos provados.

3. A detenção de Sócrates lança uma imensa sombra sobre o PS e sobre a sua actual liderança. Lança uma sombra desde já — mesmo antes de conhecidas as acusações em concreto — porque a suspeita é em si uma sombra e não há formalismos jurídicos que a possam afastar. A suspeita é um sentimento que não obedece à letra da lei. O facto de Sócrates e três pessoas do seu círculo terem sido presas após uma investigação que durou um ano significa que existem fortíssimos indícios contra si. Não são a prova definitiva da sua culpa, mas são suficientes para que todos desconfiemos. A “presunção de inocência” é apenas uma regra que a justiça e a sociedade têm de seguir porque existe a possibilidade de o arguido ser inocente (ou de, pelo menos, não se conseguir provar a sua culpa, e o direito obedece à regra in dubio pro reo), mas é evidente que, hoje, não podemos presumir que Sócrates esteja inocente. Podemos apenas fazer um esforço racional para não o condenar desde já. Aliás, a própria justiça não presume a sua inocência. Se a presumisse, não haveria razão para manter Sócrates na cadeia durante quatro dias e pedir-lhe-iam apenas para se apresentar no dia seguinte enquanto durasse o seu interrogatório.

4. A sombra que este caso lança sobre o PS afecta pessoalmente António Costa, que foi não apenas ministro de José Sócrates, mas seu número dois no governo e um seu apoiante durante os anos de governação e até à actualidade. Não se trata de "crime por associação” mas sim de responsabilidade política. Se alguém apoia e avaliza a acção política de outrem e se essa pessoa comete um crime no decurso dessa acção política, é evidente que o primeiro partilha alguma responsabilidade. É isso que significa avalizar uma pessoa ou uma política. No melhor dos casos, o avalista agiu de forma leviana ou é um péssimo juiz de caracteres.

E a sombra tambem não pode deixar de afectar os governos onde Sócrates possa ter cometido os actos de corrupção de que é acusado e as pessoas que colaboraram com ele mais de perto, já que é pouco provável que, a ter cometido de forma continuada os actos de que é acusado, os tenha cometido sem alguma conivência de outros.

A credibilidade de Costa ficou seriamente afectada pela prisão de Sócrates e a sua capacidade para reunir uma equipa à sua volta fica limitada pela imperiosa necessidade de excluir dela os socratistas mais visíveis. Se Costa ainda pode sonhar com a maioria absoluta tendo em conta o circo que irá ter lugar até às eleições e os nomes que entretanto irão cair à volta de Sócrates, só o futuro dirá.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários