A desfilar pela 40.ª vez no 1.º de Maio

Apesar de ter ordens do PCP em contrário, Rosa Dias, então na clandestinidade, não resistiu a espreitar as comemorações do Dia do Trabalhador de 1974, no Porto. No ano seguinte, já desfilou, e nunca mais faltou.

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Rosa Dias Adriano Miranda

Não podia aparecer no 1.º de Maio de 1974. Tinha orientação do PCP para se manter na clandestinidade. Não mergulhou na multidão que no Porto enchia a Avenida dos Aliados e transbordava para as ruas adjacentes, mas aproximou-se dela e gritou as mesmas palavras de ordem: “Liberdade, liberdade, liberdade!”; “Fascismo nunca mais!”; “O povo unido jamais será vencido!”

Rosa Dias sentia uma alegria desmedida. Ia a sair, voltava atrás. Ia a sair, tornava a voltar atrás. Tirou os sapatos e caminhou desde o Porto até à Maia, a cantarolar a “Grândola” e outras canções do José Afonso, a dar abraços e beijos ao “amigo” com quem há meio ano fazia de conta que era casada.

Completou 18 anos a 4 de Maio e no dia 6 - o partido quis assegurar-se de que a revolução era irreversível – recebeu ordens para se apresentar, com o "amigo", na Direcção Regional do Porto do PCP, na Rua Aníbal Cunha. “Entrámos logo na actividade. Nem íamos a casa. Púnhamos um colchão no chão e dormíamos ali.” Foi assim até o partido ordenar aos refractários e desertores que se entregassem e o companheiro ter ido cumprir o serviço militar obrigatório.

Os estudos do historiador José Pacheco Pereira indicam que, mais do que por ideologia, as mulheres entravam na clandestinidade por razões de carácter familiar-emotivo. A maioria terá conhecido e/ou prestado serviço ao PCP por causa de pais, namorados ou maridos. Rosa não. Rosa foi por convicção. Via-se como uma “revolucionária”. Ainda agora, que está a chegar aos 59 anos, se vê assim.

Pensar que só a 27 de Abril de 1974 soube o verdadeiro nome do “amigo”: José Timóteo, metalúrgico de Castanheira do Ribatejo, na clandestinidade desde 1971. Até aí, só tinham trocado nomes de código: "Fernanda", ela; "Guilherme", ele. Não queria chamar por quem não existia. Chamava-lhe “amigo”.

Lembra-se tão bem do dia em que José Carlos Almeida, funcionário desde 1962, a convidou para “saltar”. Encontrou-o no café Estádio, nas Antas. Escrevera a senha num papel. Engoliu-o antes de entrar. Tinha de perguntar: “A que horas é o comboio em Campanhã?” Ouviria: “Às 15h.”

Por força da repressão, nem só os dirigentes mergulharam na clandestinidade, todo o aparelho partidário o fazia. E Rosa sabia que os homens tendiam a assumir “tarefas organizativas” e as mulheres a ajudá-los a fabricar aparência de “normalidade”. O irmão mais velho, Domingos, fora preso numa manifestação e esfumara-se – primeiro foi sozinho, depois juntou-se-lhe a namorada, Lurdes.

Rosa tinha 17 anos. Viveria numa “casa do partido”, isto é, numa habitação que também serviria a actividade política. Teria de interagir com a vizinhança sem jamais se contradizer. Para ter motivo de conversa, devia ouvir a radionovela Simplesmente Maria.

Não poderia levar nada, teria de ir passando o seu enxoval, com discrição. “Fui a uma mala que tínhamos. Fui tirando uns lençóis, umas toalhas, umas coisinhas, poucas, e fui pondo papel para ninguém dar conta”, revive. Lá em casa, mandava a pobreza que tudo fosse de todos. “Até as cuecas eram colectivas.”

Na casa do tanoeiro Zé do Bispo, o pai, fazia-se a 4.ª classe e ia-se trabalhar. Rosa começou aos 10 anos. Primeiro, num atelier de tapetes de Arraiolos, em Gaia. Volvidos uns meses, numa alfaiataria. O pai é que decidiu: a mais velha, Ana, aprendia a fazer roupas de mulher e Rosa roupas de homem. Comprou uma máquina de costura para que elas pudessem continuar a trabalhar depois do trabalho.

“Trabalhava como uma desgraçada”, diz. Carregava e descarregava a carrinha para as feiras. Punha uma rodilha na cabeça e transportava lavagem para porcos. Só à sexta-feira ia para a alfaiataria. Um dia, revoltou-se. “Eu da alfaiataria não saio!” E ficou, ainda que proibida pelo dono de estar "à beira do mestre a aprender o corte”. “Ia deitando o olho e ele ia deixando, ia-me passando moldezinhos.”

Queria muito aprender. Começou a ir, aos domingos, a uma costureira. Aos 14 anos, já fazia calças em casa. O ambiente, no trabalho, era de cortar à faca. Nem o dono da alfaiataria, nem os filhos falavam com ela. Uma sexta-feira, estava ela a casear casacos, a relação rebentou pelas costuras.

“Havia uma ordem nova”, recorda. “Trabalhávamos tanto, tanto, e ainda éramos obrigadas a registar o que íamos fazendo. As mais velhas andavam cheias de medo. Eu fui ajudando, até que disse: ‘Que ninguém apresente! Eles, que estão no escritório sem fazer nada, que façam o registo!´” Ao perceber a afronta, o patrão veio com a régua, longa, de madeira: “Quem mandou não fazer o registo?” E ela levantou-se. “Fui eu”. O homem caminhou na sua direcção, levantando a régua. “Quem te mandou, sua filha da puta!?” Ela explodiu: “Vai chamar filha da puta aos teus filhos, seu explorador capitalista.” Atirou-lhe a banca. “Saí e nunca mais lá pus os pés.”

Foi um escândalo em São Félix da Marinha, Vila Nova de Gaia rural: a filha de um tanoeiro a enfrentar o regedor. Começaram por dizer que “andava metida nos jeovás”. Só mais tarde perceberam que se metera na política. Era muito activa em diversos grupos de jovens, até no Movimento da Juventude Trabalhadora, criado pelo PCP. “Havia muitas iniciativas, piqueniques, corta-matos, nas quais se introduziam valores de esquerda.” Não foi por acaso que a requisitaram.

Antes de saltar para a clandestinidade, já em 1973, o “amigo” aconselhou-a a entregar-lhe também as roupas íntimas. Tão usadas estavam. “Não lhe posso passar isto! Tenho de ter dinheiro para comprar peças novas. O que vou fazer?”, cismou. Como andava no rancho folclórico, a avó oferecera-lhe um colar de ouro. Vendeu-o. “Comprei cuecas, sutiãs, duas camisas de dormir, um fato de dormir inteiriço, um roube. E uma aliança de ouro, porque tinha de parecer casada.”

José Carlos Almeida até ralhou com ela. A Direcção-Geral de Segurança (DGS), sucessora da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), andava a rondar a alfaiataria, perto na Rua 21, em Espinho, onde ela entretanto começara a trabalhar. “Pus em risco tudo, mas tive sorte – saltei logo.”

Parecia uma menina, um enorme rabo-de-cavalo, o rosto ruborizado, o sorriso permanente. Tinha de parecer mais velha. Aline Peixoto, a mulher do seu “controleiro”, Henrique Sousa, é que a transformou. “Levou-me ao cabeleireiro para cortar o cabelo e fazer madeixas. Pintou-me os olhos. Deu-me uns sapatos de tacão”, conta. O “amigo” nem a reconheceu quando ela lhe apareceu em frente ao Hospital de Santa Maria, na Rua de Camões, no Porto. Caminharam até Vermoinho, na Maia. “Fiquei com os pés em bolha. Não sabia andar de sapatos de tacão e eles eram um bocado grandes.”

Não teve tempo para saudade excessiva, desgaste do isolamento, incerteza sobre tudo aquilo. A revolução tardou menos de meio ano. E ela estava encantada com a luta, com o “amigo”. “Tinha uma cor de pele espectacular, cabelo encaracolado, olhos meigos. Eu olhava para ele e ficava toda envergonhada. Eu era tão analfabeta, tão inculta, e ele falava tão bem, parecia um poeta.”

Instalaram-se num apartamento com dois quartos de dormir, um para cada um. “Eu saí de uma casa que só tinha retrete (a gente aquecia água e tomava banho numa bacia) e fui para um apartamento com banheira e chuveiro”, descreve. Tinham uma máquina de escrever, enfiada numa caixa almofadada para reduzir o som, e um copiógrafo, com o qual se tiravam, a stencil, comunicados.

O “amigo” redigia relatórios, comunicados e outros textos. Rosa fazia as cópias necessárias. Também lia. “Ele ensinava-me a interpretar a doutrina. Era fundamental ler Lenine, Marx…” Até por indicação do partido, os homens promoviam o desenvolvimento intelectual das companheiras. Ela esforçava-se para aperfeiçoar a letra e melhorar a capacidade de escrita. Preparava-se para a possibilidade de ser capturada, presa, torturada. Estudava minuciosamente o mítico Se fores preso, camarada, uma espécie de guia para militantes, 32 páginas de papel finíssimo.

Ele acompanhava várias células operárias, inclusive dos metalúrgicos, dos trabalhadores dos transportes públicos do Porto e dos pescadores. Quando ele saía, ela punha um sinal no local combinado para ele saber que podia regressar. Tinha de garantir a sua segurança, mediante “cumprimento das regras conspirativas”.

Não eram só ela e o “amigo” que estavam em risco. Reuniões clandestinas aconteciam naquele apartamento, um rés-do-chão num prédio novo, virado para um pinhal. Três dias antes da revolução, José Carlos Almeia saiu dali e foi detido pela DGS. Terá sido o último funcionário do PCP a ser levado para o forte de Caxias.

 “A maioria das ‘companheiras’, operárias, empregadas, estudantes, criadas de servir, camponesas, que eram recrutadas pelo PCP não tinham verdadeira actividade política’, escreveu Pacheco Pereira, no seu site Estudos sobre o comunismo – os movimentos radicais de esquerda e a oposição ao Estado Novo. Rosa não queria ser uma mera camarada de apoio, queria desempenhar tarefas organizativas, tanto que estava disposta a abdicar do seu amor por Timóteo. “Já estava decidido que eu ia para a União Soviética em Maio, estudar num instituto de ciências política”, conta. “Não fosse o 25 de Abril, iam preparar-me para ter actividade política.

Antes de iniciar namoro, Rosa quis clarificar tudo isso. “Se formos casal, mesmo pondo em risco a nossa relação, o que mais quero é não ser camarada de apoio, o que mais quero é ter tarefas organizativas”, dizia. Falaram com Carlos Costa, então na direcção da organização regional do Norte do PCP. Ele não levantou objecções. Só lhes recomendou precaução para que ela não engravidasse. Ainda tiveram duas filhas antes de se separarem, já lá vão mais de 30 anos.

 Naquele 1.º de Maio, o povo saiu à rua como nunca se vira. "Fim à Guerra Colonial", "Regresso dos exilados", "Direito à Greve”, lia-se nos cartazes empunhados. Tudo parecia possível. O salário mínimo nacional, que não existia, foi instituído ainda nesse mês. Ficava-se nos 3300 escudos. O primeiro 1.º de Maio em liberdade para Rosa foi o seguinte, o de 1975. Passou dias a enfeitar carros, a fazer cartazes. Não falta desde então.

Funcionária do PCP durante 28 anos, está no Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas Sociais do Norte desde 2001. Hoje, pela 40.ª vez, desfilará no Porto. Costuma ir com um microfone a gritar palavras de ordem, como estas: “Direitos conquistados/Não podem ser roubados”. Desta vez, limitar-se-á a juntar a sua voz à dos outros. “Quero continuar a transmitir força, a fazer a defesa dos valores de Abril, que estão ameaçados, a lutar por uma sociedade mais justa, com direito a trabalho, a trabalho com direitos”, remata sem perder o sorriso, que nela parece eterno.

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