A culpa é sempre dos outros

Quando a negação aperta, arranja-se um director-geral de corda ao pescoço que reconhece não ter informado superiores.

Há momentos da vida dos Governos em que a pulsão discriminatória é mais forte do que a autoritária. Quando se não tem força, discrimina-se, sempre se contentam alguns. Em Governos autoritários, a exibição de força faz parte da autoridade, é explícita. Quando os Governos são fracos e torcidos por dores intestinas, na defesa que encobre o ataque a discriminação é escondida, insidiosa, secreta se possível. Mais perigosa, portanto. Quando descoberta, nega-se por três vezes. Quando a negação já não colhe, joga-se a culpa para cima dos outros.

Vem isto a propósito da “lista VIP” de contribuintes. Real ou virtual, negada por Núncio, insistida pelos sindicatos, negada por Passos Coelho, demonstrada pelas fugas. Quando a negação aperta, arranja-se um director-geral de corda ao pescoço que reconhece não ter informado superiores, como se fosse possível em assunto de tamanho melindre. Quando o sindicalista incomoda, acusa-se de ter filiação partidária, enorme pecado. Cai o director-geral, cai o subdirector. O castelo de cartas dos executantes estatela-se, outros cairão? Será Núncio o penúltimo? Passos ficará para o fim. Nesta confusão, onde está Maria Luís? Algures, a gerir a dívida pública através do débito conjugal dos jovens.

Quando a vergonha passa de vermelha a branca, a culpa é sempre dos outros. Aumenta a pobreza? A culpa é dos pobres que adoram a subsidiodependência. Aumenta o desemprego? A culpa é dos desempregados que rejeitam os empregos oferecidos. A economia quase não cresce? A culpa é dos empresários que são incultos e dos bancos que não emprestam. As importações aumentam e a balança desequilibra-se? A culpa é do gosto dos portugueses por carros novos. O défice orçamental não baixa como devia? A culpa agora é do FMI que nos obrigou a subir impostos e a não investir. O FMI acha que estamos a patinar? A culpa é deles que desconhecem a realidade nacional, diz o Governo engrossando a voz. Há futebol a mais nas televisões? A culpa é do povo que não gosta de cultura. Há quatro antigos líderes do PSD e nenhum do PS a comentar nas televisões? A culpa é do Sócrates que está na prisão.

Quando a administração claudica, a culpa nunca é do Governo, mas da própria administração. “Eles” nada têm a ver com a administração, ela é apenas uma invenção do Estado social. O Citius falhou? Acusam-se os informáticos, relutantes no seu alargamento. As urgências hospitalares rebentam pelas costuras? A culpa é dos hospitais que se não organizam ou dos doentes que procuram auxílio onde não deviam. Faltam anestesistas em Coimbra e tem que se recorrer a contratações privadas? A culpa é dos concursos públicos que são demorados. Nas nomeações de dirigentes não há socialistas? A culpa é da Cresap que propõe melhores candidatos do PSD/CDS. O ano lectivo tarda em abrir? A culpa é dos funcionários que sabotam o bom desempenho do Governo. A crise na educação não nos larga? A culpa é dos professores que não se deixam avaliar. Está atrasado o registo automóvel? A culpa é dos que insistem em trocar de carro. Se as trocas diminuíram e os atrasos aumentam, então a culpa é do pessoal, mesmo que sejam tremendas as condições em que trabalha. Não se fez a reforma do Estado? A culpa é do Estado que se não deixou reformar com as 40 páginas do guião de Portas.

Em vão se procuram medidas novas, projectos, ideias. O Governo consumiu-se na fúria amputadora: cortar, cortar sempre. Investir é luxo de países ricos. Baixar salários e pensões, degradar o emprego é que nos torna competitivos. Como se está a ver. Não resultou? Rapidamente se dá a volta. A culpa do fraco crescimento agora é do desemprego. Esquecem que foram eles próprios a agravarem-no. Na altura, com gáudio. E os projectos?

Não se constrói o novo Hospital de Todos-os-Santos, mas vai-se criar, com estudos sobre o joelho, o novo terminal de contentores no Barreiro. Que diabo, é preciso ter bandeiras. Não se dá dinheiro para a Investigação, mas arranja-se um subsídio de interioridade para médicos. Sim, vão-se os dedos, fiquem os anéis. Cortam-se apoios sociais, mas aumentam-se as promoções nas Forças Armadas para além do esperado. Em ano de eleições todas as cautelas são poucas. Não há dinheiro para unidades de cuidados continuados, mas autorizam-se novos hospitais de agudos, privados que depois irão facturar à ADSE. Sem um forte sector privado é impossível desmantelar o SNS. Aumenta a dimensão das turmas nas escolas, mas subsidia-se generosamente o ensino privado. Não se descongelam as carreiras, mas recompensa-se algum pessoal do fisco em complementos salariais. Sem cobradores bem pagos não há receita, uma mezinha de séculos. Não se apoiam os casais jovens com filhos, basta mandá-los multiplicarem-se, à espera que a natalidade cresça. Não se fez a reforma da Segurança Social, mas corta-se temporariamente nas pensões e benefícios. E a sustentabilidade? Quem vier atrás que feche a porta.

TAP, o imaterial. Se a TAP é tão ineficiente como o Governo pensa, com pessoal a mais, privilégios laborais, greves inoportunas, aviões velhos, práticas obsoletas, então não se entende o apetite dos interessados na compra. A não ser que seja para partir e vender aos bocados. Ah, mas não é esse o caso, dirão.

A TAP tem um valor material esquecido e um valor imaterial garantido e expansível. Os interessados conhecem-no. Apesar da crise, das quebras do turismo, das greves, a TAP amplia rotas, aumenta passageiros, arrenda aviões, compete com ganas. Porquê? Por ser imensa a parte coberta do iceberg da sua procura. Milhões de consumidores da saudade, espalhados pelo mundo, 350 mil novos emigrantes de renda média-alta nos últimos três anos, o seu mercado aumentou e aumentará na proporção da emigração. Se a crise amainar e o emprego crescer, serão os imigrantes a entrar-nos pelas portas, de avião. O valor imaterial está na dimensão da diáspora. Gostamos de navegar, espalhámo-nos por toda a parte, rotas distantes ou breves. Entrar num TAP é quase como chegar a casa, mesmo quando a comida é muito puxada, as meninas muito queques, ou os minutos de atraso, manhã cedo, se arrastam e ampliam pelo dia fora. E os vinhos, ah, os vinhos, como são quentes, dizem os estrangeiros. Têm dúvidas? Pensem só na diáspora dos outros: os belgas, por exemplo, alguém tem um especial prazer em entrar num Brussels? Ou os suíços? Conhecem-lhes alguma diáspora? Americanos, alemães, franceses, ingleses e espanhóis não têm diáspora, têm impérios. Coisa diferente.

TAP vendida, barata por causa do passivo, será estilhaçada, mal termine o embargo contratual. Adeus caminhos de Portugal no mundo!

Professor catedrático reformado

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