A caneta ainda é a arma dos políticos

Os acordos entre partidos que consagraram alianças foram subscritos com discretas esferográficas. Na adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, Mário Soares e Rui Machete usaram modelos Parker. Marca que também esteve presente, pela mão de Ramalho Eanes, no diploma que empossou o primeiro Governo saído de eleições.

Fotogaleria
A assinatura do Tratado de Adesão à então Comunidade Económica Europeia, no Mosteiro dos Jerónimos, a 12 de Junho de 1985, terá sido firmada, tanto por Mário Soares como por Rui Machete, com uma caneta Parker.
Fotogaleria
Em Dezembro de 2007, Durão Barroso, enquanto presidente da Comissão Europeia, terá subscrito o Tratado de Lisboa com uma discreta Pilot rollerball. Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Pedro Passos Coelho tem sido visto na posse de exemplares da prática Uni-Ball, uma produção da Mitsubishi japonesa. Paulo Portas admite gostar da tinta permanente. Rui Gaudêncio

No tempo em que não existia a assinatura electrónica, quando o computador suscitava mais desconfiança que desembaraço e a máquina de escrever era preterida pelo ruído das suas teclas, foi o utensílio, por excelência, da comunicação do pensamento. Mas a revolução tecnológica não lhe retirou o protagonismo de sempre. Até na política. A caneta ainda é a arma dos políticos portugueses.

Na memória subsiste uma imagem única. Em 16 de Maio de 1974, três semanas depois da Revolução dos Cravos, na tomada de posse do I Governo provisório liderado por Adelino da Palma Carlos, um ministro assinou o seu compromisso com esferográfica: uma BIC cristal. Era Francisco Pereira de Moura, ministro sem pasta pelo MDP/CDE. Com igual estatuto e em representação do PSD e PCP, estavam naquele gabinete Francisco Sá Carneiro e Álvaro Cunhal.

Não sabia Pereira de Moura, professor catedrático de Finanças, que, 40 anos depois, o utensílio mais comum para a escrita dos políticos é a sua esferográfica. Em várias reinterpretações, mais ou menos elaboradas. De marcas nacionais ou estrangeiras. De design ou meramente utilitárias.

Homem da esquerda, Francisco Pereira de Moura tomou posse pela primeira vez – seria ministro sem pasta e dos Assuntos Sociais dos IV e V governos provisórios, ambos liderados por Vasco Gonçalves – sem gravata. Esta pequena história, de que a História é feita, não foi simples. Obrigou a uma intervenção de Mário Soares junto do General António de Spínola, explicando a modernidade do colle roullé de cor branca – camisola de gola alta -, que vestiu Pereira de Moura na cerimónia. Quando hoje, punhos desapertados e camisas abertas são sinónimos de in, ou seja, de actualidade. Estão em voga com o look da distinção.

Soares convenceu Spínola com o recurso ao galicismo estrangeirado de colle roullé. O que evitou uma crise política na sequência de um problema de indumentária. E a foto de 16 de Maio de 1974, no Palácio de Belém, consagrou Francisco Pereira de Moura como um vanguardista. Aliás, com o mesmo destaque inovador que introduziu no utensílio da escrita. E que, dos extremos da paleta política ao centro das bancadas, tem seguidores da invenção do húngaro László Biró, um tipógrafo que em 1932 criou uma caneta que não borrava e cuja tinta não secava no depósito - os pesadelos dos utilizadores da tinta permanente e do seu cortejo de acessórios, como o agora desconhecido mata-borrão. Portanto é a Biró, ao seu irmão Georg, um químico, e ao técnico industrial Imre Gellért, que se deve a esferográfica. Que, pela produção em série e facilidade de utilização, democratizou a escrita.

Não foi pelo propósito do conceito político de democratizar que a Futura, de escrita azul, se tornou numa espécie de caneta oficial do CDS. Diogo Freitas do Amaral, o primeiro presidente do partido, confidenciou ao PÚBLICO que, ainda antes do 25 de Abril de 1974, por comodidade e abundante escrita – o que tornava incómodo o cerimonial de enchimento da tinta na caneta permanente – se rendeu a esta espécie de “prêt-à-porter”, de usar e tirar fora. 

Um hábito que, num partido conservador, se transformou em moda. “As canetas Futura foram de facto levadas para o CDS pelo professor Freitas do Amaral – que, aliás, recordo-me de ter uma letra admirável”, corrobora Paulo Portas. “Continuo a usar a Futura azul como caneta de trabalho, tem uma impressão firme e é de escrita limpa. É a que uso para escrever muitos dos meus discursos”, destaca o vice-primeiro-ministro.

Assim, foi com Futura centrista e esferográfica de Francisco Sá Carneiro, do PPD/PSD, que foi assinada a constituição da Aliança Democrática, em 1979. E também foi com utensílios sem problemas de borrar a tinta que a formação da actual maioria que nos governa ficou consagrada em papel, em Junho de 2011. Pedro Passos Coelho tem sido visto na posse de exemplares da Uni-Ball, uma produção da Mitsubishi japonesa.

Influência da arquitectura
Foi ainda com Futura que Freitas do Amaral assinou os dois pactos MFA/Partidos – 11 de Abril de 1975 e 26 de Fevereiro de 1976 – e o acordo de aliança com o PS, em 1978. Na subscrição deste último, que levou a uma solução governativa única – cuja repetição tem pairado caso ocorra o desmembramento da actual maioria e uma vitória insuficiente dos socialistas – não foi possível descortinar qual o utensílio a que recorreu Mário Soares.

O antigo Presidente da República, garantiram seus ex-colaboradores, passou da tinta permanente para a caneta de feltro de tinta azul. Pela comodidade, evitar carregar e voltar a carregar, pois Soares escreve tudo à mão.

Mas há uma certeza. Porventura na cerimónia mais importante do seu percurso político e a mais decisiva para o país, Mário Soares recorreu à sua Parker 75 Sterling Silver. Foi em 12 de Junho de 1985, na assinatura do Tratado de Adesão à então Comunidade Económica Europeia, no Mosteiro dos Jerónimos, enquanto primeiro-ministro do governo PS/PSD.

Naquele acto, era vice-primeiro-ministro Rui Machete. O actual chefe da diplomacia portuguesa não tem certeza sobre qual a caneta que utilizou para selar o compromisso europeu. Dada a solenidade do acto admite, no entanto, ter recorrido a uma Parker de tinta azul escura. A mesma cor com a qual firma os seus despachos no Ministério dos Negócios Estrangeiros e que agora sai da ponta de esferográficas Caran d'Ache de que é grande consumidor. “Este ano já perdi duas ou três”, revela.

A provar que na escrita há coincidências entre os políticos está o facto de ser também com esferográficas Caran d'Ache que o actual secretário-geral do PS e presidente da Câmara de Lisboa convoca a despacho, redige discursos e desenha estratégias. Esta marca da Suíça tem ainda outros produtos, como os incontornáveis lápis de cor, cujos estojos foram, noutros tempos, uma prenda de Natal para alunos aplicados e bem comportados. Existem, ainda, as lapiseiras do fabricante helvético.

Muito utilizadas na arquitectura, o aparecimento de mestres deste ofício na vida política popularizou a sua utilização nos estados-maiores partidários. “Foi por influência do arquitecto Manuel Salgado”, admite o autarca lisboeta, referindo-se ao hábito recente das lapiseiras, seguindo o exemplo do seu vereador na Câmara de Lisboa.

Nos estiradores está também a origem remota das lapiseiras Caran d'Ache a que Paulo Portas recorre para acompanhar a leitura e a anotação de documentos. “É um hábito que herdei do meu pai, arquitecto”, confirma, referindo-se a Nuno Portas.

As que apanham…servem
“Para cartas e documentos mais pessoais gosto de usar a caneta de tinta permanente”, destaca o número dois do Governo e presidente do CDS, que não é avesso ao cerimonial do tinteiro: “Nada supera tinta permanente sobre um papel de qualidade.”

A posse das canetas, instrumentos pessoais, encerra histórias de afecto. As que transitam por herança têm, pois, um significado diferente. “Tenho uma Parker com grande valor sentimental, uma herança de família”, recorda Portas.

Não é o único. “Na minha zona [Beira Baixa], os filhos mais velhos herdavam dos pais os objectos pessoais”, relata o general António Ramalho Eanes. Foi deste modo que lhe chegaram três Parker diferentes. Destas, destaca uma Parker 61 simples, que o acompanhou na Presidência da República, entre Julho de 1976 e Março de 1986.

“O diploma mais significativo que com ela assinei foi o que empossou o I Governo Constitucional [23 de Julho de 1976 com Mário Soares como primeiro-ministro], o primeiro da democracia portuguesa saído de eleições”, recorda Ramalho Eanes. O antigo Presidente da República perdeu o rasto à Parker 61 de tinta preta com que assinou aquele diploma. “A caneta desapareceu, terá sido alguém que quis ficar com uma recordação minha”, ironiza.

Desta situação desagradável não se queixa José Manuel Durão Barroso. Há fortes possibilidades do Tratado de Lisboa ter sido subscrito pelo então presidente da Comissão Europeia com um discreto utensílio de escrita: uma Pilot rollerball.

Se assim foi, pois Durão Barroso é adepto desta marca na versão extrafina, em Dezembro de 2007, no Centro Cultural de Belém, recorreu à caneta australiana. Na mesma cerimónia que passou para o anedotário com o “porreiro, pá!” com que o antigo primeiro-ministro José Sócrates saudou o novo tratado reformador da União Europeia. Um detalhe: a qualidade do papel interessa a Barroso. Recorre aos cadernos Moleskine, de capa preta, os que desde 1997 pretenderam recuperar os utilizados no antanho por Vincent van Gogh, Pablo Picasso ou Ernest Hemingway.

Estilo apurado na escrita tinha Álvaro Cunhal que, para além da política e da escrita, também desenhava. O histórico dirigente do PCP (1913-2005) passou da tinta permanente à Futura. “O Cunhal era um esteta”, recorda Carlos Brito, antigo dirigente comunista. Segundo ele, a cor de tinta preferida de Cunhal era a preta. E passou de uma caneta permanente com aparo cambado à escrita de ponta de feltro. Com este utensílio, foram tomadas as notas que levaram a rever a estratégia nas presidenciais de 1986 no XI Congresso do PCP, conclave extraordinário em 2 de Fevereiro de 1986, na Amadora, no qual foi decidido “engolir o sapo”. Ou seja, votar na segunda volta em Mário Soares para derrotar Freitas do Amaral.

Outros políticos há para quem a caneta é utensílio de trabalho sem preferência. Não escolhem, há uma ausência total de capricho. Jerónimo de Sousa é um desses casos de puro desenrasca. “As que lhe dão, as que apanha e que depois distribui”, diz o PCP, do modus da escrita do seu secretário-geral. Não está só, nem este desapego pode ser confundido com uma marca de classe.

Também Francisco Pinto Balsemão se abastece com o que apanha. O patrão da Impresa, antigo primeiro-ministro e fundador do PSD, reconhece, sem rebuço, o seu expediente. “Não escrevo com nada de especial, esferográficas que apanho em hotéis ou congressos”, admite.

Mas há quem prefira a discrição. Cavaco Silva não revela com o que escreve. Reserva que aguça o apetite informativo. Um cartão do Presidente permite descortinar que é adepto da tinta negra, de escrita grossa, e pratica uma caligrafia legível. Com esta letra se assinou a convocação das últimas eleições legislativas de 2011.

Apesar do culto do instrumento, o importante não é com o que se escreve. Mas o que se redige.

Sugerir correcção
Comentar