A camarada Lucinda lia o Avante! atrás da moita e hoje fez cozido no Couço

Caravana da CDU fez o tradicional almoço de campanha no Couço, onde Jerónimo pediu o mesmo empenho que os camaradas mostravam antes do 25 de Abril na vila ribatejana conhecida pela oposição ao regime.

Foto
Jerónimo de Sousa esteve em Almada com Joaquim Judas MIGUEL MADEIRA/ARQUIVO

Como sempre e como dantes, como titula Camané, a CDU foi ao Couço, uma paragem incontornável de qualquer campanha comunista. Aqui não é preciso dizer-se "o PCP", é simplesmente "o partido". Que por cá aparece nas vésperas das eleições, sim, mas também ao longo dos quatro anos que dura uma legislatura. Aparece, não. Está, é.

E é "o partido" desde há muitos anos, perdidos na memória de Lucinda Cochicho, a cozinheira que esta terça-feira preparou o cozido à moda do Couço para 250 militantes e simpatizantes da CDU que já não cabiam na sala e (sortudos) acabaram a almoçar na sombra das traseiras. Desde o tempo em que não se podia falar – nem mesmo pensar – no PCP.

Como nos anos em que Lucinda, tirada da escola no fim da quarta classe, aos 11 anos, foi para a jorna, para o arroz. À hora do almoço, depois de almoçarem debaixo de um sobreiro, iam para trás da moita ler o Avante!, “em voz baixa, muito baixa e ai de quem falasse sobre o assunto fora do grupo.” Era a mais nova dos seis irmãos, só ela e o irmão a seguir sabiam ler. Lembra-se de ler, no arrozal, para a irmã 12 anos mais velha. Lucinda Cochicho, a cochichar e a tornar-se camarada. E compreendia o que lia? Sim, desde muito cedo. “Aprendi a conhecer os camaradas que andavam na luta política pela maneira como andavam de bicicleta.”

Por aqui, o trabalho na agricultura era sazonal. Foi no arroz e no tomate que aprendeu a base da “política de defesa do companheiro de luta, do camarada, a entreajuda que se vai cultivando com o convívio mas que também nasce connosco” – e se isto não é comunismo, Lucinda não sabe o que será então. Recorda o trabalho de equipa para apanhar as 80 caixas de tomate por dia que o capataz lhe exigia, ou quando fazia a monda grossa do arroz, quando ele já estava a ficar seco e a erva lhe rasgava a pele dos braços.

Cenários a lembrar os gaibéus que Alves Redol descrevia com primor. “Os agrários tinham uma máquina muito bem montada para explorar os trabalhadores. Os patrões davam ordens ao feitor, que mandava o manajeiro, e este escolhia as sotas”, mulheres mais velhas que aliciavam outras para irem trabalhar para a herdade e ficavam responsáveis por elas, recorda Lucinda.

À volta das panelas
À uma e meia da tarde, na cozinha improvisada no hall da Casa do Povo, palco destas reuniões frente ao prato dos camaradas do Couço, as mulheres não páram. É um frenesim de travessas de carne e hortaliça, tigelas de sopa. No ar há um cheirinho apetitoso a cozido. Não à portuguesa mas à moda do Couço. Nas orlas da lezíria que o Sorraia e outros afluentes enriquecem, já na passagem da planície ribatejana para o montado alentejano, sempre foi o porco a fornecer o prato.

É ele o rei e senhor deste cozido. Ou melhor, pequenas partes dele, as de segunda e terceira escolha, que a fêvera era para vender. Do bicho se aproveitam o chispe e a cabeça, sobretudo a orelha, e alguma entremeada. Foram salgadas na véspera, em grandes alguidares e panelões. De manhã foram ao tacho com um bom ramo de hortelã, morcelas de sangue, chouriço de carne e farinheiras por companhia e saíram à medida que ficavam cozidas, para dar lugar às hortaliças. A água fervente recebeu cenouras e batatas, mais demoradas que as nabiças, feijão verde, lombardo, couve coração e olhinhos de couve galega. E mais tarde haveria de dar banho à massa e de demolhar o pão, para fazer a sopa. Para regalo dos 250 comensais que pagaram seis CDUs.

Mesmo não sendo preciso, António Filipe e Jerónimo de Sousa sobem ao palco da Casa do Povo para lembrarem que mais votos e mais deputados na CDU são menos votos e menos deputados que têm estragado o país, que roubaram, insistem. E que vão continuar, avisam, a olhar pelas propostas que fazem, reforça Jerónimo, a tirar mais aos que menos têm. Agora falam muito das condições de recurso – “as palavras que eles usam para enganar os portugueses”, critica o líder comunista. Que explica: isso significa que aqueles que recebem algum apoio social, se tiverem uma casita, um quintal, eles vão fazer as contas e avaliar e já parece que têm muito e deixam de receber o apoio.

 “A decisão de votar tem que partir de uma reflexão da vossa vida (…) Vocês, que passaram tanto na vossa vida, têm que fazer mais, como fizeram antes do 25 de Abril”, apela Jerónimo à memória de muitos que, na sala, calcorrearam montes e herdades a fugir da polícia que, teimosa, cercava a vila nos anos 50 a 70 à procura de camaradas.

Hoje “é muito simples ser comunista no Couço. Agora não dá trabalho nenhum, dá só canseira”. Porque depois do almoço, é preciso lavar a loiça, tarefa a que se atiram nas traseiras da casa do povo enquanto dizem mal do Coelho e trocam impressões sobre o Syriza.

Sugerir correcção
Ler 28 comentários