A alegada “perda de poder” da Comissão (I):arqueologia constitucional europeia

1. Já em Maio, conclui-se mais um ciclo político europeu. Um ciclo marcado pela vigência do Tratado de Lisboa e pela emergência de uma crise financeira e económica sem paralelo na história da integração europeia.

No balanço desta crise, e para aqueles que olham para a dinâmica institucional europeia, fica a percepção – ou, pelo menos, a sensação – de que a Comissão Europeia perdeu poder. Perdeu poder para o Conselho; perdeu poder para o Parlamento; está agora sujeita ao efeito triturador da tracção das pinças dessa tenaz institucional. Acredita-se, por outro lado, que essa pretensa “perda de poder” – de capacidade de acção, de influência e de decisão – foi deveras negativa para a saúde e o equilíbrio do projecto europeu.

Comecemos, antes do mais, por pôr as coisas no seu contexto. No quadro político europeu, não existe um Estado ou uma realidade que se lhe assemelhe. Não há seguramente um Estado federal, mas não intercede sequer uma realidade ambígua – o tal “OPNI” (objecto político não identificado) – a que possamos chamar Federação (de Estados, de Nações, de Estados-Nação).

2. Indo um pouco mais longe, a situação constitucional da União Europeia aproxima-se da situação que, a dada altura da respectiva evolução política pautou e caracterizou o Reino Unido. E que nominalmente, ainda hoje, pauta e caracteriza. Não subsistia ali (não subsistirá talvez ainda…) o Estado (State) – um Estado no sentido continental do termo. O que bem se compreende, se se pensar que a experiência política britânica não conheceu o absolutismo. O absolutismo foi, em larga medida, o criador do Estado (tal como o conhecemos até aos finais do século XX). Ora, a comunidade política britânica transitou directamente de uma constituição tipicamente medieval (em que não havia Estado) para uma comunidade política liberal (em que continuou a não haver Estado). É temerário afirmá-lo – em especial numa coluna de jornal –, mas a tão esquecida quanto longa revolução inglesa não foi verdadeiramente uma revolução… Foi sim uma “reacção”: Uma reacção à tentativa de Tiago I e do seu filho Carlos I de trazer o absolutismo para as ilhas britânicas – absolutismo que estava em nítida afirmação e florescimento na França e em quase todo o continente. É esta reacção – que só, na aparência e com simplismo, se podia tomar por conservadora – que evita e impede a criação de um Estado no sentido moderno do termo. E à falta de Estado, subsistiam – herdeiras de um múnus, vindo dos confins medievos – instituições públicas com uma pretensão constitucional de poder global: a Coroa, o Parlamento e, com diferentes nomes e profundas variações, o Governo. Instituições estas que, na sequência, da chamada Revolução Gloriosa de 1688, continuaram a digladiar-se em busca de uma posição de predomínio no tabuleiro de xadrez constitucional.

3. Esta visão esquemática da evolução política inglesa casa, de resto e para pegar num exemplo ilustrativo, com a sobrevivência e a longevidade de instituições como a Câmara dos Lordes (pelo menos no formato anterior à reforma Blair). Aceitar uma divisão do parlamento em duas câmaras, assente num critério de extracção social, marcadamente hereditário – equivalente ao que constituiu e compôs as cortes, as dietas e os estados gerais pela Europa medieval e pré-revolucionária –, é um resultado evidente da ausência do absolutismo. E não deixa de ser caricato que não tenha nunca obstado ao reconhecimento do Reino Unido como uma democracia… Diga-se, aliás e a despropósito, que a sociedade britânica ainda hoje revela uma grande tolerância para com as assimetrias e uma sensibilidade manifesta para com as questões da liberdade. A desvalorização do étimo da igualdade em prol do valor da liberdade é, outrossim e com efeito, uma sequela indelével desse desconhecimento da época absolutista. Ao contrário da cartilha e da vulgata histórica dominante, o absolutismo – embora mais como “ideia” ou “projecto” do que como “praxis” ou “realidade final” – foi um regime fartamente nivelador, com uma enorme propensão igualitária. Na verdade, para o ideário absolutista, toda a diversidade (social) dos tempos medievais deveria ser erradicada com vista a fundar uma sociedade política homogénea em que sobejassem apenas duas qualidades de pessoas: o soberano, de um lado; os súbditos, do outro. A revolução francesa foi, sem dúvida, a grande proclamadora do ideal democrático da igualdade; mas o terreno para tanto havia sido fortemente adubado pela “longa noite” das luzes do despotismo. Sabemos bem como tanto o despotismo esclarecido como a Revolução são filhos legítimos do mesmo movimento filosófico: o iluminismo. Foram justamente esse absolutismo e a sua consecutiva revolução que a comunidade política britânica não experienciou. Foi isso que não permitiu a construção de um Estado – enquanto realidade, comunidade e aparelho político –, e foi ainda isso que propiciou a conservação de um conjunto de instituições como centros autónomos de produção e de imputação política.

4. É justamente esse jogo de concorrência entre instituições políticas de vocação geral, sem inserção ou enxerto num quadro (estatal) que as integre e funcionalize, que pauta e marca a vida constitucional europeia. Recorrendo a uma imagética simbólica, pode dizer-se que as instituições comunitárias não lembram planetas, enquadrados nas rotas de um sistema, mas antes evocam e invocam estrelas, capazes de, na sua “auto-constituição”, projectar luz própria e competir nessa projecção. É esta fenomenologia que induz uma análise política e constitucional centrada em cada instituição e que legitima uma visão focada em “perdas e ganhos” e em “avanços e recuos”. E que, do mesmo passo, aponta para um apuro do grau de radicação popular, cidadã e nacional de cada instituição. Eis o que se terá de testar em artigos próximos. 

*Deputado Europeu (PSD)
paulo.rangel@europarl.europa.eu

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