Um país refém dos chicos-espertos da política

Este debate é essencial à democracia e vital para o futuro de Portugal. E o seu adiamento ou cerceamento prejudicam o futuro do país.

Um prefácio de um livro de discursos do Presidente da República, em que Cavaco Silva se pronuncia sobre a necessidade de definir estratégias de recuperação económica de longo prazo, divulgado sábado pelo Expresso; uma entrevista de fundo ao sociólogo António Barreto sobre a reforma do Estado e estratégias de viabilidade para a governação de Portugal, publicada pelo Diário de Notícias no domingo; e um manifesto para “Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente”, assinado por 74 personalidades representativas de diversos sectores políticos e sociais, divulgado pelo PÚBLICO na quarta-feira. Em qualquer parte do mundo esta cascata de tomadas de posição públicas significa que há uma fome e uma vontade e capacidade de debate sobre o futuro do país, demonstrativas de uma sociedade preocupada, atenta e dinâmica.

São documentos com perfil diferente, que expressam questões diversas, que apontam caminhos ou pistas várias e até incompatíveis ou contraditórias, mas são a prova de que há ideias, de que há pensamento, de que há consciência crítica atenta e preparada para efectuar um debate real sobre o modelo de desenvolvimento que deve ser adoptado e sobre o que é possível fazer para melhorar a condição de vida das pessoas.

É evidente que nem todos os protagonistas disponíveis para esse debate vital pensarão o mesmo e que há divergências profundas. Mas isso é normal numa sociedade democrática e é essencial para que haja debate e para que através de aproximações, de cedências e de acordos se encontrem caminhos e estabeleçam regras e prioridades.

As saídas apontadas são diversas, nomeadamente as que se reconhecem na leitura dos três documentos citados. Vão elas desde a defesa de que é essencial preparar a reforma do Estado, como fez António Barreto, até ao alerta para a segurança que dará a adesão a um programa cautelar contra o risco de uma saída limpa, desenvolvido por Cavaco Silva, continuando na defesa de que é preciso negociar em comum acordo com os credores uma reestruturação da dívida pública portuguesa, como propõe o manifesto dos 70. E há inúmeras questões que merecem e precisam de ser equacionadas.

Por razões que aparentemente parecem inultrapassáveis, o debate sobre que ideia de país e que modelo de sociedade devem ser adoptados continua adiado, como bem salienta António Barreto. O próprio Presidente da República não pára de insistir na necessidade desse debate ser feito de modo a que se estabeleçam regras e orientações a médio e longo prazo. E tentou mesmo que os partidos do Governo e o principal partido da oposição se entendessem nesse plano, forçando até que se sentassem à mesa ao aproveitar a crise governativa do Verão passado.

É também transparente que esse debate é político e é condicionado por contornos ideológicos. De outro modo, sublinhe-se, não poderia ser. É demagógica a reacção de que qualquer dos documentos citados surge num momento eleitoral, logo destinado a incendiar a campanha e a prejudicar o Governo. Assim como demagógico é dizer que pressiona e impressiona negativamente os credores. Este debate é essencial à democracia e vital para o futuro de Portugal. E o seu adiamento ou cerceamento prejudicam o futuro do país.

Mas inapelavelmente, inexplicavelmente, permanece uma espécie de autismo inerente ao exercício do poder em Portugal, que mantém o país refém de uma atitude de tacticismo político das direcções partidárias. E o que é mais absurdo é que muitos dos que estão disponíveis para contribuir para o debate sobre que futuro poderá aspirar o país e sobre que ideia de Portugal pode ser construída são, como é natural, personalidades políticas com um currículo de prestígio ao nível da vida partidária e que são ignorados pela máquina de poder dos partidos parlamentares.

Esse autismo das lideranças partidárias foi manifesto esta semana quer no silêncio com que a entrevista de António Barreto foi recebida, quer no silêncio com que o prefácio de Cavaco Silva foi lido. E foi visível de forma lapidar nas reacções ao manifesto para a reestruturação da dívida pública, quer no silêncio do líder do PS, António José Seguro, quer na violência da rejeição da admissibilidade do debate pela parte do primeiro-ministro, Passos Coelho.

Atitudes de fuga em frente deste tipo travam o debate num país em que a administração do Estado está cartelizada e na mão do manobrismo táctico que alimenta as máquinas partidárias e sustém as direcções dos partidos, deixando que o país permaneça refém dos chicos-espertos da política.

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