Um governo de esquerda é isto

Um governo de esquerda é um governo que governa, como todos os governos, de uma forma pragmática. E não um governo de sonhadores, mas sim de gente que sabe quais são os seus valores de esquerda e que norteiam a sua actuação.

Comentadores de direita e analistas vários colocaram ao longo das últimas semanas, e até meses, a tónica na ideia que um governo apoiado à esquerda estaria condenado a breve trecho por via das velhas fracturas entre partidos e porque o sucesso de um seria a perda de votos dos outros.

No entanto, essa é mais uma falsa ideia sem aderência à realidade actual e à estratégia futura. A aliança PS, BE, PCP e os Verdes funcionará porque é do interesse comum introduzir políticas diferentes das levadas a cabo pelos governos PSD-CDS e, também, do interesse individual de cada partido para a manutenção ou reforço futuro das suas votações.

Governar à esquerda vai querer dizer apoiar e votar em conjunto as medidas de interesse comum mas, simultaneamente, ter BE, PCP e os Verdes a reivindicar e criticar o PS por ainda não se ter ido longe o suficiente e isso é a nova normalidade governativa.

Esse será o registo normal, não se aplaudirá o que estiver acordado ser feito, nem o PCP, BE e os Verdes darão os parabéns ao PS, pois cada qual estará a fazer o seu papel.

Governar à esquerda quererá também dizer ter o BE a afirmar os louros das medidas tomadas pelo PS no campo das políticas de liberdade de opção de vida, ter o PCP a fazê-lo no caso de reversão de processos de privatizações e dos Verdes na esfera do ambiente, e também aí estaremos no campo da normalidade.

Governar à esquerda vai querer também dizer ter o PS a interpelar os partidos à direita para que haja consensos alargados em matérias que são de interesse nacional e de matriz de esquerda e que só podem ser recusados à direita por motivos tácticos e não de consciência.

Governar à esquerda será também acertar e errar, pois na política também se erra mas à esquerda também se sabe corrigir os erros e seguir em frente para fazer melhor.

Num momento em que já se deixou de questionar se é possível ou não ter um governo PS com apoio parlamentar do BE, PCP e verdes, vale também a pena relembrar quais serão os valores que estarão na base da governação de um governo de esquerda e que, para além dos acordos assinados e das palavras dadas, orientarão as votações na Assembleia da República e as decisões governativas.

Um governo de esquerda assenta sempre na protecção e na promoção do indivíduo, ou seja, na garantia de que todos tenham o direito a viver com dignidade e fazê-lo no respeito pela diversidade da vida humana através do acesso à educação, ao emprego, à segurança social, à habitação e à saúde.

Um governo de esquerda tem na sua prioridade principal o combate às desigualdades, em particular no domínio da riqueza e da concentração excessiva desta que dificulta a criação de emprego, no atenuar da pobreza extrema e na criação das condições básicas de subsistência para todos.

Um governo de esquerda afirma-se através de políticas assentes na procura permanente de maior igualdade, da promoção dos direitos humanos que nos estão consagrados perante a lei, garantindo a obrigação do seu cumprir, sem discriminação de qualquer tipo, seja quanto ao sexo, idade, genótipo, situação social ou financeira, condição física, género, opiniões, filiação política, religião, língua, origem, família ou qualquer outro aspecto.

Um governo de esquerda tem no seu ADN a sustentabilidade e a preservação dos ecossistemas e biodiversidade, assegurando que a utilização dos recursos naturais portugueses se paute por um desenvolvimento sustentável com base no interesse comum, ao mesmo tempo afirmando-os, sejam eles marítimos, as reservas e fontes de água e os seus direitos de acesso, os direitos de exploração de energias renováveis, não renováveis e de mineração, como propriedade comum e perpétua.

Um governo de esquerda tem presente a necessidade central dos cidadãos e que é ter o direito ao exercício de uma profissão, assegurando condições dignas de trabalho e remuneração justa. O direito ao repouso, às férias e aos momentos de lazer. Assim como a iniciativa e acção, defendendo o direito de associação, incluindo os fins empresariais, políticos ou outros, e assim garantir que a criação e a sua remuneração equilibrada prosperem.

Um governo de esquerda é sempre balizado na sua acção e intervenção pela liberdade de expressão nas suas diferentes formas de criatividade, enquanto base fundamental para uma sociedade democrática. O que abrange a liberdade de informação e criação, a garantia do direito à protecção da privacidade e ao anonimato digital. Governar à esquerda é apostar na liberdade de informação e criação assente numa administração aberta e transparente.

Um governo de esquerda governa também tendo claro que solidariedade para com o ser humano é o pilar essencial da política internacional, ao nível bilateral e multilateral, no âmbito lusófono e mediterrâneo, na União Europeia e nas diversas instituições internacionais.

Ter um governo à esquerda é também assumir a memória de que não há nada de substancialmente novo em governar à esquerda com governos de esquerda. O PS já o experimentou em Lisboa, ora com partidos à sua esquerda ou com movimentos de cidadãos

Essa governação é, e foi sempre, caracterizada pela vontade de congregar aqueles que se identificam com outra forma de equacionar o futuro e confrontar cada um, e cada qual, com as suas responsabilidades perante valores essenciais.

Governar à esquerda com um governo de esquerda será isto e não será para todo o sempre, pois na política não há "sempre" e tudo tem princípio e fim, mas tudo se pode sempre repetir e reconfigurar à esquerda para continuar a construir vidas mais justas e sociedades menos desiguais e que tenham futuro.

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