Tudo correu mal, mas vamos seguir em frente

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1. Um amigo meu enviou-me a frase perfeita para iniciar este texto. É de Guy Mollet, socialista que foi primeiro-ministro de França em finais da década de 50, citada por Raymond Aron, e reza o seguinte: “Dizem-nos que a nossa política fracassou. É uma boa razão para renunciar a ela?” Serve para resumir a reacção dos líderes europeus ao desastre político das eleições europeias. Os chefes de Estado e de governo juntaram-se num jantar informal para reflectir sobre eles. Não se conhece ainda com todo o detalhe o teor das discussões, mas sabe-se, pelo menos, que desperdiçaram uma ocasião fundamental para dar uma resposta política forte ao que se passou em toda a Europa, com a ascensão dos partidos nacionalistas, populistas e de extrema-direita praticamente em toda a parte.

Preferiram “dispersar” as conclusões do jantar, mantendo a fórmula politicamente correcta com que tentam sempre disfarçar as divisões, mesmo que tivessem admitido que talvez seja preciso mudar as prioridades europeias. Falaram, naturalmente, do crescimento e emprego – é uma frase que fica sempre bem, mas que ainda não teve qualquer tradução prática. Incluíram dois temas recorrentes, que citam quando não têm mais nada para dizer: é preciso olhar para a segurança energética (é verdade, mas chegaram tarde) e para as alterações climáticas. Transmitiram a ideia de que o avanço dos extremos era um problema localizado e no contexto particular das eleições europeias. O nosso primeiro-ministro resumiu na perfeição esta ideia quando disse, e cito de memória, que o avanço da extrema-direita com contornos preocupantes foi apenas em dois países. Ao ouvi-lo, pensaríamos que ia acrescentar… Malta ou Chipre (sem ofensa para nenhum destes países). Mas não. “Apenas” queria dizer a França e o Reino Unido.

O presidente da Comissão Europeia, que se mostrou muito consternado com os resultados, não levou muito tempo a acrescentar que isso não nos deve impedir de “manter o rumo”. Perdeu mais, disse ele, quem cedeu aos populismos. Qual rumo? Outros líderes utilizaram o cenário pós-eleitoral para justificarem os seus objectivos europeus. Cameron, naturalmente, voltou a insistir que a Europa precisa de reformas profundas. Deixou-se apanhar pela ratoeira do “concurso” que ele próprio criou para ver quem era mais eurocéptico e agora não sabe bem o que há-de fazer. Matteo Renzi, a nova vedeta do centro-esquerda europeu, disse que chegou a altura “de mudar as políticas europeias”. A Itália recebe em Julho a presidência rotativa da União Europeia e ele não tenciona perder a oportunidade. Mark Rutte, o primeiro-ministro holandês, diz que vai apresentar uma nova agenda. Hollande insistiu em que a França não está enfraquecida. O problema é que está. E, se a França for abaixo, a Europa vai com ela. A margem de manobra do Presidente para levar os franceses a aceitar algumas mudanças ficou ainda mais reduzida. A cartada Manuel Valls pode esgotar-se muito rapidamente. A UMP do anterior Presidente está a desfazer-se graças aos escândalos de corrupção. Se é difícil à Frente Nacional ganhar legislativas (por causa do sistema eleitoral francês), o mesmo não acontece com as presidenciais.

Se nada acontecer na Europa, se os partidos europeus não perceberem que a vitória de Marine e de outros deve-se ao facto de conseguirem falar aos mais atingidos e ameaçados pela crise, pela globalização e pela imigração, então as coisas podem mesmo correr muito mal. Os europeus sentem-se longe das decisões da Europa, não percebem quem as toma, não sabem como influenciá-las. Há um problema democrático na Europa que é preciso enfrentar de vez. O risco maior está em Berlim. É verdade que os alemães se preocupam com o declínio francês. A elite política tem uma ideia do que seria uma Alemanha sem a França e sem a Europa. O problema é que não consegue traduzir essa consciência numa mudança política que não se limite a impor aos outros o seu próprio modelo. Isso nunca resultará.

2. Até porque é preciso dizer também que a ascensão dos extremos é, em boa medida, o resultado directo da forma como esta crise foi gerida politicamente. Desde 2010, quando a Grécia estava à beira da falência, o discurso de Berlim (e dos seus parceiros do Norte) foi petróleo atirado para a fogueira. Partiu a Europa em duas, abrindo um fosso entre os países do Sul e da periferia, incapazes, preguiçosos, culturalmente atrasados, e os do Norte, competentes e probos. Nalguns casos quase que atingiu níveis de xenofobia, que não é só uma cultura da direita mais extrema em relação aos imigrantes vindos de fora. Impôs-lhes doses maciças de austeridade em programas mal pensados e de resultados ambíguos. Disse-lhes que era esse o preço a pagar, e, sem discutir, se quisessem ficar no euro. Abriram-se feridas profundas, acordaram-se velhos fantasmas. Criou-se um clima que também ajudou a alimentar nos países credores o sentimento de que lhes estava a ser pedido um preço demasiado elevado para garantir a sobrevivência do euro, incluindo as economias periféricas.

As instituições, a começar pela Comissão, faliram na sua missão de tentar preservar o interesse comum. A eurocracia perdeu qualquer peso político e, em muitos aspectos, passou a rodar em seco, surda e muda perante a realidade e os seus problemas. Hoje, de Haia a Berlim, passando por Paris, há um coro de vozes a defender a redução dos seus poderes e a devolução de algumas das competências europeias para o nível nacional. Na Holanda, foi simbolicamente a directiva de Bruxelas para fixar o limite da potência dos aspiradores que animou o debate. Matteo Renzi diz numa entrevista a vários jornais europeus: “Se a Europa me explica com todo o detalhe como é que se deve pescar um peixe-espada, mas não me diz nada sobre como salvar um imigrante que se afoga, isto quer dizer que alguma coisa está a correr mal.” Como é que um país como a Dinamarca, por exemplo, onde o desemprego é baixo, o crescimento é algum e as pessoas vivem bem, consegue que o partido populista anti-imigrantes e antieuropeu obtenha a vitória que obteve? À frente do centro-esquerda da primeira-ministra e do centro-direita?

Há 130 deputados contra a Europa no Parlamento Europeu. Se calhar nem se conseguem organizar. O problema é que os partidos que os elegeram vão influenciar as agendas políticas nacionais, levando possivelmente os governos a ter ainda mais medo de tomar decisões verdadeiramente europeias e de as explicar aos seus eleitorados com a clareza e o rigor que são necessários para retomar a sua confiança. Já temos aí a tentação do proteccionismo, que seria o golpe final na capacidade europeia de ter um papel no mundo que está a emergir. Já temos as novas leis para expulsar imigrantes sem trabalho, incluindo europeus. A Europa já viu este “filme” muitas vezes e sabe onde pode conduzi-la. O que não podem continuar a dizer, a torto e a direito, é que “a crise resolve-se com mais Europa”. Já ninguém os pode ouvir. Arriscam-se a ver à sua volta um grande espaço vazio que alguém se encarregará de preencher.
 

   





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