Trapalhada, uma receita para o pós-troika

1. O Governo que foi capaz de mostrar coragem e sangue frio nos três anos em que cortou pensões e salários a eito na função pública caiu esta semana na incoerência e no desnorte. Há razões para temer o pior no tempo que resta do “mandato sagrado” que Pedro Passos Coelho se prepara para cumprir, custe o que custar, tenha ou não ao seu lado a soberania popular que, em última instância, sacraliza ou demoniza os governos em democracia.

O regresso imponderado de um guião de reforma do Estado que esteve meio ano a marinar no esquecimento, uma entrevista sem sal nem substância do próprio primeiro-ministro, indecisões sobre matérias cruciais, como a metamorfose de cortes temporários em cortes definitivos, ou avanços e recuos em políticas sectoriais legitimam o receio de que, para lá do despacho sobre a sorte dos rendimentos de funcionários públicos e pensionistas transformados em alvos imóveis, o Governo não conhece caminho algum.


 Com uma inesperada acalmia nos mercados e uma tímida recuperação na colecta dos impostos e na poupança em despesas sociais em cima da mesa, o Governo decidiu, e bem, ensaiar uma nova crónica para os meses que restam do seu “mandato sagrado” (a expressão foi do próprio Passos Coelho na entrevista à SIC). Não seriam necessários cortes de 2000 milhões de euros como muitos observadores previram, nem sequer de 1700 milhões, como o geralmente bem avisado oráculo do Governo, Marques Mendes, sugeriu. Bastam poupanças de 1400 milhões para que o défice de 2015 seja conquistado. Se Passos e seus pares mantivessem a linha de rumo anterior, bastar-lhes-ia acrescentar uma pitada de IRC e de IVA na carga fiscal ou engendrar mais uma manobra de redução de salários e pensões. Não indo por aí, o que se requer é sabedoria, estudo e coordenação. Domínios em que o Governo não é propriamente um ás.

Viciado a reagir por pressão da troika e pouco treinado a pensar o país pela sua própria cabeça, o Governo entrou neste limiar de um novo rumo aos trambolhões. A ressurreição do Guião da Reforma do Estado que Paulo Portas apresentou durante uma hora nas televisões no final de Outubro fez-se de forma patética. Quando já ninguém se lembrava do extenso rol de propostas abertas, Portas desenterra-as e sem lhes acrescentar uma vírgula voltou a convocar os partidos com a urgência própria de quem está aflito ou não sabe o que fazer. Nos dias que se seguiram, foi-se percebendo que o espírito do Guião estava disperso pelos discursos dos ministérios das Finanças, da Saúde, da Segurança Social ou do próprio primeiro-ministro. Um espírito que se manifestou sempre de forma desgarrada, desconexa e errática.

É por isso que as anunciadas poupanças de 1400 milhões na despesa do Estado soaram assim, desgarradas, desconexas e erráticas — para além de inverosímeis. Não passam de envelopes de intenções. Cortar x no salário de y funcionários é uma proposta tangível, mas poupar no papel das cópias, nos telefones ou na gasolina de um estado macrocéfalo e centralizador é um exercício tão incerto como uma aposta no Euromilhões. A promessa de poupanças de 1400 milhões é um acto de fé com o qual o Governo vai tentar dourar o Documento de Estratégia Orçamental e ludibriar a troika. No mundo rural português chama-se a isso “dar palha ao animal”.

O vazio e a inconsistência não ficaram isolados. Aqui e ali formaram a aliança com a descoordenação. O imposto sobre produtos com “excesso” de sal ou de açúcar será uma realidade para o Ministério da Saúde, mas não passa de “especulação” para o da Economia — “Nem no açúcar nem no sal se entendem”, foi um título acertado do editorial do PÚBLICO de ontem. A portaria que hierarquiza os centros hospitalares para cortar serviços não é para cumprir à letra. Nos processos em curso para a concessão dos serviços públicos de transportes no Porto e em Lisboa há lacunas tão graves como a falta de definição do que será o serviço público. A equipa dedicada a estudar a reforma na Segurança Social foi apontada como a diva que iria inspirar o próximo passo do Governo até ter passado a ser mais uma consultora do processo.

O próprio primeiro-ministro acabou por sublinhar toda esta sensação de devaneio colectivo ao apresentar-se para uma entrevista sem ter nada o que dizer. Mais, Passos mostrou-se impreparado ao afirmar que o Governo já tinha cortado 1600 milhões nos custos intermédios quando afinal estava a contar com uma poupança no negócio desfeito dos submarinos. Pior, submeteu-se a uma comunicação directa com o país admitindo ter na sua posse um estudo tão fundamental para a vida de milhares de cidadãos, o dedicado à reforma das pensões, sem o ter lido. Nem o seu registo gélido foi capaz de evitar a sensação de que o Governo caminha às apalpadelas, no escuro da sua própria incapacidade de definir um rumo e de o aplicar.

Para ter uma resposta consistente de reforma de Estado, para ser capaz de ter um rumo de políticas públicas que combinem racionalidade com o interesse nacional, faz falta mais conhecimento do país, mais pensamento reflectido, mais estudo. Faz falta mais senso comum e menos arrebatamentos ideológicos que vislumbram amanhãs que cantam só e se o sentido público do Estado for demolido. Quando tem a sua primeira grande oportunidade de governar em vez de ser apenas um agente operacional de cortes, o Governo treme na decisão e afunda-se na descoordenação. Mais semanas como esta e não haverá recuo. O parco capital político acumulado com um sopro de recuperação da economia não basta para anular a sensação de que, afinal, Passos só é corajoso, lúcido e determinado a cortar rendimentos.

2. António Barreto deixou a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Não vale a pena entretermo-nos agora a determinar as razões pelas quais saiu nem quem teve culpa neste desfecho. O que agora é importante é prestar-lhe a devida vénia pelo que fez na fundação. Num tempo de receitas instantâneas e de mensagens de 140 caracteres, António Barreto evitou o supérfluo, o show off e concentrou os seus planos na divulgação do conhecimento que devemos ter sobre nós mesmos enquanto país e enquanto sociedade. Indo por aí, deixou-nos essa maravilhosa criação que é a base estatística Pordata. E ainda uma extraordinária colecção de ensaios sobre problemas e questões cruciais para o que somos e queremos ser, vendidos a baixo custo.

Raramente dinheiro privado (da família Soares dos Santos) foi tão bem aplicado na promoção do interesse público como na Fundação. Além das estatísticas ou dos títulos que ficam para a posteridade, Barreto deixou-nos outra mensagem de singular valor: a que sem estudo, saber e reflexão será mais difícil atacar os problemas terríveis com os quais nos confrontamos. Muito obrigado António Barreto.

Sugerir correcção
Comentar