O discurso de Passos Coelho na Festa do Pontal deste ano parece, à primeira vista, uma mera prestação de contas ao PSD, por parte do seu líder, sobre como desempenhou o cargo de primeiro-ministro para que o seu partido o indicou. Mas a leitura da transcrição deste discurso mostra mais do que isso.

Não apenas pela reafirmação feita por Passos de que o seu projecto para Portugal está “ainda a meio”. Nem mesmo pela promessa de ir ao Pontal, daqui a um ano, em clima de campanha eleitoral, defendê-lo. O que distingue o discurso do Pontal-2014 é o espírito e o tom em que é feito. Um espírito e um tom que são de quem está a lançar o seu futuro político e não de quem está em vias de  abandonar a política.

Perpassa pelo discurso de Passos no Pontal uma atitude perante a política que é própria de quem tem ambição bem determinada. E a leitura deste discurso feito enquanto líder do PSD numa festa do partido, em conjunto com aquele que foi o seu discurso como primeiro-ministro, na Assembleia da República, no debate sobre o estado da nação, indicia que, mesmo que venha a perder as legislativas, Passos está convicto de que possui um futuro político de longo prazo.

Dando uma resposta à Mark Twain, para aqueles que o olham como um cadáver anunciado que chefia um governo moribundo, Passos dá a entender que não está disponível para morrer para a política. Exemplar nesse domínio é o final do discurso do primeiro-ministro a 2 de Julho: “Com mais liberdade, com maior qualidade nas instituições e nas políticas públicas, os portugueses serão os artífices de uma nova fase da nossa história em que, daqui por 20 anos, poderemos olhar para trás e dizer: foi aqui que tudo começou.” Passos vê-se como delineador e executante de um projecto para as próximas décadas de Portugal. E deixa claro que “daqui por 20 anos”  pretende poder olhar para trás e admirar a tarefa que agora apenas começou.

Com todas distâncias e diferenças necessárias, Passos assume uma atitude de quem – insistimos, apesar de todas as diferenças – pode ser visto como alguém que admite poder repetir uma carreira política de longo curso como a de Cavaco Silva. E há paralelos que podem ser feitos entre este dois líderes, que entre si sempre viveram uma relação tensa, quer na relação entre primeiro-ministro e Presidente da República, quer na anterior relação entre presidente da JSD e primeiro-ministro.

Também Passos “recebeu” para governar um país num momento de transformação radical na sua ligação com a Europa: Cavaco “fez” a integração concreta na CEE, Passos “fez” a reintegração na União Europeia, ao ser o chefe do Governo a quem coube cumprir o novo guião para Portugal, incluído no memorando de entendimento. Cavaco “lançou” um novo modelo de desenvolvimento económico, Passos “lançou” outro.

O paralelo entre ambos pode até ser estabelecido do ponto de vista da personalidade. Se Cavaco foi sempre um líder solitário no seu percurso e nas suas decisões, ainda que apoiado por correligionários leais, Passos é também um político solitário, assim como frio e racional, que não hesita em decidir sozinho, mesmo quando apoiado pelos que o cercam a cada momento.

É neste sentido que o discurso do Pontal-2014 é já um acto solitário de lançamento de um futuro, porque nele Passos faz o balanço do que considera ter sido o arrancar do “projecto de mudança” de que é mentor, para o que usou como alavanca e veículo a intervenção dos credores externos (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI).

Passos procurou assim começar a construir o seu próprio mito. Um mito em que sobressai a sua atitude de distância em relação ao poder económico, devido à forma como “não se meteu de mais” na crise da implosão do Grupo Espírito Santo, conseguindo passar a tese de que não é o dinheiro do Estado que está a ser usado para tapar o buraco da megafalência Espírito Santo, como se o fundo bancário usado não fosse dívida pública. Uma atitude de não transigir com o tráfico de influências que pode até ajudar a esquecer a imagem de que adiou a saída de Miguel Relvas do Governo para proteger o amigo.

O que não encaixa no mito de si mesmo e da sua governação, que Passos começa agora a construir, é a sua incapacidade de ser consequente e concretizar de facto o que prometeu. O que Passos não explica é por que defendeu uma revisão constitucional quando era candidato a primeiro-ministro e não voltou a falar nela depois de eleito. O que Passos não explica é por que, como primeiro-ministro, insistiu num quadro de reformas adequado a uma Constituição revista, que nada fez para rever – dizer agora que o PS não aceitaria é uma falsa desculpa, pois, não tendo tentado, este argumento não tem sustentação nos factos.

A verdade é que mito é mito e realidade é realidade.