O que divide a esquerda democrática europeia

Para uns, como é o meu caso, é ainda com o centro-direita que será possível estabelecer consensos que viabilizem a chamada "economia social de mercado".

Há quinze dias pronunciei-me sobre o debate em curso no Partido Socialista, procurando chamar a atenção para as questões que considerava mais importantes e que, como tal, deveriam merecer tratamento especial por parte dos candidatos em liça.

 Constatei nos dias subsequentes que foram publicamente enunciadas interpretações críticas desse texto que incorriam no erro de deturpações básicas. Por isso mesmo sinto-me na obrigação de explicitar com a máxima transparência possível posições assumidas no artigo em causa que, não sendo devidamente compreendidas, suscitaram apreciações indevidas.

Em nenhum momento afirmei a tese da identificação entre as políticas prosseguidas nos últimos anos da governação socialista anterior com o caminho deliberadamente prosseguido pelo actual Governo, já que tenho plena consciência do profundo antagonismo doutrinário que separa esses dois modelos de governação. O que disse foi outra coisa: lembrei que a austeridade começou a ser aplicada ainda no tempo do Governo anterior por razões que têm que ver com a natureza da resposta dada pela União Europeia à chamada "crise das dívidas soberanas". Só que uma coisa foi a necessária aplicação interna de imposições resultantes de um contexto adverso e outra coisa, substancialmente diversa, constituiu a opção deliberada feita pelo actual Governo por um caminho assente na promoção de políticas marcadas pela hegemonia da austeridade.

De tal distinção resulta uma outra consequência relevante: a não adesão à teoria explicativa da crise elaborada pela direita. Para esta, como sabemos, a presente crise terá tido como origem a irresponsabilidade despesista dos anteriores governos socialistas. Os factos históricos desmentem essa efabulação oportunista. A crise teve uma origem mais profunda e de carácter mais sistémico e teve, sobretudo, que ver com a impreparação da zona euro para enfrentar os problemas originados pela desregulação dos mercados financeiros, o ataque especulativo contra a moeda europeia e os problemas sérios do sistema bancário. Estabelecida de forma clara esta divergência lembrei, contudo, a necessidade de o país cumprir, numa primeira fase, os compromissos contraídos no memorando de entendimento assinado com a troika. Tal posição não significa uma concordância programática com o conteúdo desse documento, mas tão-só o reconhecimento prático do carácter impositivo desse documento acordado num contexto de verdadeira emergência nacional. Enquanto grande parte da direita se extasiou com a chegada da troika, antevendo a possibilidade de aplicação de uma nova ordem económica e social dificilmente concretizável no contexto do puro jogo democrático interno, a esquerda democrática não rejubilou com a necessidade de aplicação do programa de ajustamento financeiro. Se preconizei, então, a opção pela abstenção na votação do primeiro Orçamento da actual maioria foi por razões que nada têm que ver com uma adesão programática pura, mas, antes, com uma avaliação das circunstâncias histórica então prevalecentes. Não me arrependo da posição então defendida.

Por último, também não é verdadeira a imputação que me foi feita de advogar a adesão acrítica ao conteúdo do designado Tratado Orçamental. Pelo contrário, de há muito que venho a preconizar a necessidade de assegurar uma boa negociação política no contexto europeu que permita a aplicação do Tratado com base numa interpretação que seja o menos restritiva possível. Este tema está hoje, aliás, na ordem do dia e no centro da discussão política europeia. O que não alimento é a ilusão de uma revisão próxima desse mesmo Tratado com uma alteração draconiana do modelo de estabilidade e crescimento europeu. Tão pouco faço também uma leitura absolutamente negativa de vários dos princípios subjacentes ao modelo em vigor. O que me parece mais importante é canalizar energias para uma real melhoria das condições de funcionamento de uma zona monetária em que estamos integrados e para a criação de condições que permitam a libertação dos recursos públicos e privados imprescindíveis para a retoma do investimento, sem o qual não haverá crescimento da economia. Também aqui se não vislumbra qualquer coincidência com a posição que tem vindo a ser assumida pelo Governo em funções.

Dito isto convirá, contudo, esclarecer com toda a clareza o que separa a minha posição da de alguns sectores da esquerda que, com toda a legitimidade, propõem um caminho diverso daquele que tenho vindo a apresentar. Para esses sectores não é possível a prossecução de uma política social-democrata no actual contexto europeu; acusam a União Europeia de ter seguido por uma via ultraliberal, atacam em particular a opção monetarista germânica e concluem pela necessidade de afirmação de uma alternativa de esquerda totalmente descomprometida com o centro-direita europeu. É uma posição respeitável, embora não seja claramente a minha. Pelo contrário, entendo que é preciso menos maniqueísmo ideológico, maior abertura para a compreensão dos processos históricos conformadores da identidade de cada entidade nacional e disponibilidade para travar uma disputa política em ordem à recuperação de alguns equilíbrios perdidos. A social-democracia constituiu-se precisamente a partir da recusa dos extremismos e na base do reconhecimento da importância do Estado de direito democrático e da economia de mercado – nesse sentido absorveu uma parte significativa da tradição liberal europeia. Só que foi muito mais longe do que isso e concorreu decisivamente para a edificação de um Estado providência alicerçado no princípio da igualdade. Todo esse património foi sendo construído com o contributo de uma parte significativa do centro-direita europeu – não há nenhuma razão para pensar que assim não volte a suceder.

Aqui é que se situa verdadeiramente o núcleo da cisão que hoje separa posições no interior da esquerda democrática europeia. Para uns, como é o meu caso, é ainda com o centro-direita que será possível estabelecer consensos que viabilizem a chamada "economia social de mercado", tão identificada com o melhor do próprio projecto europeu. Para outros, a defesa deste modelo implicará uma ruptura e a constituição de novas alianças mais à esquerda. Com todo o respeito penso que esta posição enferma de uma grave e insanável insuficiência – a outra esquerda a que se dirigem permanece prisioneira de uma cultura absolutamente antiliberal, que a leva a contestar a economia de mercado e até mesmo a desvalorizar vários aspectos do Estado de direito. Estou por isso persuadido da impossibilidade de seguir por essa via. Não cometo, contudo, a indelicadeza de considerar que aqueles que, partindo de uma genuína posição social-democrata, acreditam nesse caminho estão automaticamente identificados com os extremismos dos seus hipotéticos parceiros. Na minha óptica estão enganados, mas não estão nem moral nem politicamente corrompidos. Para a semana continuaremos a discutir este assunto.

 

 

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