O paciente português

O paciente tornou-se a metáfora mais comum do país. É como um filme de série B.

Não tenho por isso muito de novo a acrescentar ao que já foi diagnosticado. Imagino um doente deitado numa marquesa por causa de uma infecção. E duas equipas médicas à volta do paciente português a propor terapias diametralmente opostas e simetricamente ineficazes. À nossa direita, o Governo e a troika acham que é preciso amputar o doente para ele sobreviver, mas não sabem onde está a infecção. Vão cortando um braço aqui, uma perna ali. Sai uma reforma dacolá, um subsídio "dacoli" e um dia lá aparecerá o remédio.

Se alguém disser à equipa médica à direita que qualquer dia já não há mais nada para cortar, e muito menos doente para curar, responderá que até já há coisas a crescer, como as exportações. Nessa altura, o ministro Paulo Portas pisca os olhos e, como que possuído por um soberano entusiasmo, desata a repetir “1640!”, “1640!”, "1640!" – uma alusão a uma data que deixou de ser feriado porque a troika mandou tirar.

Mas se do lado direito do paciente a receita é amputar da ponta dos pés à ponta dos cabelos, do lado esquerdo só há uma ideia fixa: não se pode mexer em nada. Quando lhes dizem que se tudo ficar como está a infecção matará o paciente, cerram o punho e, com uma convicção soberana, começam a exclamar “demissão!”, “demissão!”,  “demissão!”.

Sabemos que o que está a confundir os impacientes médicos e o paciente português é um erro do diagnóstico. O sintoma que revela este erro escondido é a falha da narrativa oficial sobre as causas da crise. Em 2008, o mundo estava à beira do abismo por causa dos bancos. Dois anos depois, a crise dos bancos desaparecia, explodia a das dívidas soberanas. E o que aconteceu à crise dos bancos? Aparentemente sumiu, como aqueles personagens dos  guiões mal feitos que desaparecem a meio da história e que o argumentista não resolve. No entanto, continua exactamente onde estava. A crise das dívidas soberanas existe porque a crise dos bancos continua por resolver.

Os maus médicos são os que se enganam na doença. E curar as dívidas dos países da zona euro sem tratar dos activos tóxicos dos bancos não funciona. O paciente português pode continuar à espera. Enquanto o vão cortando aos pedaços, o buraco negro do sistema financeiro continua a paralisá-lo.

Perante este impasse, não admira que andem tantas peças fora do sítio no volátil mapa da política portuguesa. Mário Soares, por exemplo, tornou-se o ponto focal de uma estranha e incipiente aliança de contrários. Transformou a esquerda numa espécie de beatério obrigado a sair de casa com este frio para ouvir o seu próprio Papa dizer coisas que uma boa parte deles considera “excessivas” e não repetiria mas que é preciso ir aplaudir.

Desencadeou-se desde então uma vaga de críticas ao “neo-radicalismo” de Mário Soares. Todo o cão e gato que quer ser gente dispara a sua sapiente indignação, lembrando sempre, com devota piedade, que ele dantes costumava ser bom e moderado mas que agora anda “a passar das marcas”. Que Soares anda amargo e excessivo ninguém duvida. Muito mais excessivo do que isso é o paternalismo, essa doença bem portuguesa, em nome do qual todo o medíocre passa ralhetes a quem se porta mal.

A amargura de Soares não caiu do céu: é a amargura de uma geração que lutou durante décadas pela democracia, pela Europa e por uma ideia de justiça social e que agora vê tudo isso desabar como um castelo de cartas. Isso não justifica que se fale de violência nos termos muito pouco franciscanos em que Soares falou. Nem que se acredite no regresso a uma unidade mística que não é de todo a do PREC, ao contrário do que já se ouviu dizer.

Agora, a Aula Magna teve um papel: pôs a descoberto o vazio do discurso, não só do PS (como disse António Costa) mas da esquerda bloquista e comunista, que continua perdida na sua lengalenga anacrónica. E teve um efeito catalisador, relançando a discussão sobre o que deve ser a alternativa à maioria. E isso conta porque a liderança de António José Seguro se tornou-se reactiva. O PS reage à oposição interna e à oposição externa, em vez de propor uma visão. Rebate, em vez de afirmar.

 A pior ilusão da Aula Magna é a crença na restauração de uma ideia de unidade que era defensável antes de 1974 (na verdade, uma memória falsa), mas que a democracia tornou caduca. Unir a esquerda em torno da mágoa inventando uma unidade perdida no tempo é em si mesmo tempo perdido.

Apesar disso, Soares teve esse mérito de relançar o debate. É mais ouvido pelo país do que toda a esquerda que arregimentou. E numa coisa, pelo menos, ele não foi excessivo. Em relação ao Presidente, que acusou de partidarismo, até foi moderado. Cavaco Silva podia ter resolvido a crise política de Julho convocando eleições. Salvou o Governo, mas não foi por amor a Passos Coelho: foi por medo, o que é muito pior do que ser faccioso. Perdeu-se tempo e a oportunidade de construir uma nova coligação, legitimada pelo voto.

O tempo para pensar uma alternativa é agora e não daqui a seis meses. E isso é verdade para a esquerda e para o centro-direita, onde o pós-passismo já começou.

Enquanto isso, o paciente continua a ser cortado às postas.
 
 
 

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