O Argumento Geral do Estado

Comecemos por tirar um minutinho para recordar aquele tempo em que Portugal fazia os orçamentos sem preocupações, isolado do contexto mundial, com o simples recurso à magia caseira. Lembram-se?

Eu não. Portugal foi sempre, pese as suas elites opinativas fechadas sobre si mesmas, um país exposto às tendências europeias e globais. O endividamento, o empobrecimento e a expansão (a extração de recursos de outras terras), ou tudo isto junto, fizeram o pão-nosso de cada século até ao século de hoje.

Dá jeito agora achar que é culpa do euro. Mas quando pedíamos a ingleses ou alemães e estes exigiam ficar com colónias portuguesas ou serviços públicos nacionais, ainda não havia euro.

Dá jeito achar que é só culpa nossa. Mas quando éramos nós a expropriar bens de cidadãos alemães como reparações da Iª Guerra Mundial, fazíamos o que toda a gente fazia. A história das relações entre estados é a história de empréstimos interessados e cobranças à força.

Dá jeito achar que isto é culpa da “Europa”. Mas não foram os eurocratas que pediram para inventar o tratado orçamental nem o semestre europeu: foram os estados, os mesmos estados nacionais de novo na moda. Estamos a viver no soberanismo dos parlamentos nacionais dos outros, que defendem os contribuintes dos outros e contam cada cêntimo dos impostos dos outros. “Europa” seria outra coisa: títulos de dívida europeia, cobrança comunitária de impostos às multinacionais e democracia europeia para gerir esses recursos. Tudo o que os eurocéticos não querem.

Finalmente, dá muito jeito achar que não há alternativa. Mas vamos a ver se nos entendemos: realidade alternativa não há. Alternativas dentro da realidade tem sempre que haver.

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Durante anos, defendi que era possível fazer um orçamento de esquerda sem sair do euro nem romper com a União Europeia — não sendo de esquerda um orçamento onde os constrangimentos desaparecem, mas um orçamento que faz políticas de esquerda com os constrangimentos que existem. Mas, durante anos, a direita dizia que não era possível fazer um orçamento de esquerda. E, durante anos, muita esquerda defendia que era impossível ficar no euro ou manter o diálogo com a União.

A gritaria das últimas semanas e dias não passa de uma tentativa de disfarçar que se enganaram ou nos enganaram. Não há uma realidade alternativa em que o estado deixe de cobrar impostos; mas há uma alternativa real entre cobrar impostos aos trabalhadores ou cobrá-los à banca. A direita que proclama em altas vozes a continuidade da austeridade nunca aceitou acabar com a isenção de IMI para os fundos imobiliários. E a esquerda eurocética que carrega na retórica contra os inimigos externos pretende que não notemos como deixou cair as suas promessas de rompimento com a UE e mesmo saída do euro.

Finalmente, e felizmente, todos proclamam que o resultado lhes deu razão. Mesmo quando disseram no passado que era impossível fazer orçamento ou chegar a acordo.

Errado devo ter estado eu, quando há uma semana escrevi: “Depois de alguma dança institucional, encontrar-se-á um caminho intermédio que salve a face de toda a gente”. Não esperava que fosse mesmo a face de toda a gente.

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