Jogos com fronteiras

A livre circulação é bem mais que um trunfo económico, é uma conquista cultural que precisa de ser defendida

O fecho de fronteiras não é uma circunstância nem um pormenor. Impedir a livre circulação de pessoas tem um efeito estrutural na União que vai, a prazo, minar os pilares que a validam. E mal vai uma ideia de Europa que precisa de defender Schengen, mas é este o cenário criado por uma Comissão lerda, uma crise estrutural mal resolvida e líderes tacanhos em descontrolo.

O mercado comum foi uma política essencialmente económica que se valeu de argumentos comerciais. Assim foi nos primeiros anos, cumprindo de forma muito eficiente o papel na construção europeia. Mas rapidamente a livre circulação de pessoas se tornou o ponto determinante do ideal europeu que se formou no final dos anos oitenta.

As maiores conquistas da União, como os processos de alargamento a sul e a leste, foram sedimentadas por políticas como o programa Erasmus que mudaram efetivamente a forma como vemos e vivemos hoje os nossos vizinhos. Se há um elemento decisivo para a identidade europeia, ele não é o euro nem o centralismo de Bruxelas. É a livre circulação e a facilidade de cruzamentos que as novas gerações já tomam como natural e fazem efectivamente parte da cultura europeia. 

Pôr tudo isto em causa é muito simples: basta argumentar com uma crise conjuntural e começar a reerguer fronteiras para mexer com os fundamentos das liberdades instituídas. Não é preciso que venham estudos explicar que os que mais se fecham são os que mais têm a perder: a história demonstra que quem se esconde definha lenta mas inexoravelmente.

O nanisno intelectual de alguns líderes é um risco a que a União Europeia não se pode entregar. O senhor Orban e as políticas segregacionistas da Hungria têm de ser denunciadas por Bruxelas e sancionadas de acordo com o direito europeu – algo que só ainda não ocorreu por um calculismo político de curto prazo que tem dominado as opções da Comissão. É bem mais importante lembrar aos estados-membros que têm de respeitar rigorosamente o direito europeu do que fazer afirmações genéricas sobre a “protecção das fronteiras externas” e reagir tarde e de forma envergonhada à pressão migratória.

Para perceber os custos do isolamento nem é preciso ir muito longe: num gesto político que ficará nos compêndios, o Reino Unido optou por se fechar – e as conclusões estão à vista. Crise financeira, episódios de xenofobia nas ruas, ameaça de secessão por parte da Escócia. Se a União Europeia for pelo mesmo caminho e colocar em causa a livre circulação de pessoas, deixa de haver razão para resistir a crises institucionais e perde-se a maior conquista civilizacional erguida nos escombros da Guerra Fria. Vai-se a ideia de Europa, ficam as fronteiras e os muros que tão má memória têm.

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