Falem um pouco mais baixo, por favor…

A tolerância foi a primeira vítima desta grave crise política.

António Costa transformou uma derrota eleitoral esplendorosa numa esplêndida vitória; escondeu o jogo aos seus eleitores; faz o que faz para salvar a pele; disse que não promoveria nenhuma coligação negativa e promoveu; garantiu que só derrubaria o Governo se tivesse uma alternativa sólida e estável e não tem; anunciou um acordo com os partidos à sua esquerda e o máximo que conseguiu foi uma vaga declaração de princípios que mais parece uma negociação sindical do que um enunciado de governo. Ainda assim, António Costa deve formar Governo. Porque todos os seus pecados, todos os seus erros ou fragilidades resultam de opiniões subjectivas sobre o que deve ser a transparência democrática, a ética republicana ou as prioridades do país. Porque nada do que Costa disse, escolheu e fez conflitua com o que prescreve a Constituição. Porque num Estado de Direito, numa democracia, o que regula o normal conflito de opiniões, o que impede que uma ideia ou um conceito se sobreponham às ideias e conceitos de outrem é a Constituição. Havendo, como há, quem acredite na viabilidade do Governo de Costa, havendo, como há, quem o encare até com indisfarçável esperança, havendo, como há, o respeito das regras do jogo da Constituição, é absurdo que alguém queira impor as suas teses às teses dos outros e impeça Costa de governar.

É por isso que custa a ouvir o primeiro-ministro de um Governo rejeitado na Assembleia a protestar contra a existência de um “golpe” ou a considerar que o processo que nos conduziu até aqui se resumiu a uma “fraude”. Se o secretário-geral socialista decidiu subverter a tradição que mandava para São Bento o líder do partido ou coligação mais votado e se ousou quebrar um tabu de quarenta anos para impedia o Bloco de Esquerda e o PCP de se aproximar do poder, é porque pôde e porque a Constituição o deixou. Se fez mal ou se fez bem, se foi politicamente íntegro ou moralmente duvidoso, essa avaliação diz respeito a cada um de nós. Que temos o direito e o dever de o criticar ou de o apoiar e teremos, mais tarde ou mais cedo, oportunidade de o penalizar ou premiar quando houver eleições. Até lá, é importante que se respeitem as diferenças de opinião e que se saiba viver sob a hegemonia da opinião dos outros. Sem tolerância, bem se sabe, não há democracia.

Infelizmente, porém, a tolerância foi a primeira vítima desta grave crise política. Num ápice, o centro esquerda e o centro direita parecem ter ruido e acabado nos extremos do arco ideológico. É praticamente impossível propor uma visão moderada para o país ou falar da relação entre os partidos que, mal ou bem, mas mais bem do que mal, moldaram a face da democracia portuguesa. Logo após o 25 de Abril o cantor popular Quim Barreiros entoava uma história com um refrão assim: “Se não formos comunistas, já somos reaccionários”. Esse tempo voltou a ser real para a esquerda pura e dura que recuperou os dogmas da sua ortodoxia. Mas voltou também, embora em sentido inverso, a sê-lo para uma direita que se recusa pura e simplesmente a admitir que o PCP sem o Pacto de Varsóvia é um tigre de papel ou que insiste em olhar para o Bloco como um grupúsculo de perigosos trotskistas, maoístas e afins dispostos a fazer a revolução popular ao virar da esquina. Para essa direita mais radical, as diferenças de opiniões e de ideias apenas fazem sentido quando se enquadram nas ruas regras. Quando algo se lhes escapa, começam a vislumbrar golpes e fraudes em todo o lado.

Se a arrogância de uma esquerda que se extremou é irritante e perigosa, a intolerância de uma direita que se considera dona do país não o é menos. Ambas exigem denúncia e combate, a menos que queiramos viver numa democracia feita de gritos, insultos, denúncias absurdas e suspeitas de que há algo no subsolo ou nos bastidores a tramar a legítima soberania popular. Para começar, era bom que quem lidera os partidos tivesse consciência de que o pior que nos pode acontecer agora é regar a fogueira com gasolina. Quando Passos põe em causa a legitimidade de um Governo de Costa está a dizer a quem vê este manicómio de fora que Portugal é um país do terceiro mundo, uma república das bananas onde reina a barafunda e a subversão da lei, e está a afirmar às suas hostes que há pela frente um combate para repor a legitimidade do regime e expurgar a fraude. Quando os colunistas da Direita radical insistem na receita, estão a fornecer armas para que as conversas da política no café se transformem numa troca de ódios, de medos e ressentimentos. Quando Catarina Martins, ou Jerónimo de Sousa ou João Galamba falam da direita com recurso a uma adjectivação eivada de rancor e desprezo, seguem o mesmo caminho.

É para se evitar o agravamento deste clima que António Costa deve ser rapidamente indigitado. O limbo, a incerteza ou a crença vaga de que tudo pode voltar à estaca zero com um governo de gestão ou de iniciativa presidencial criam um terreno fértil para que a disputa azeda e estéril que se vai instalando no país possa florescer. Como chefe de Estado, Cavaco Silva vai ter de temperar a sua percepção individual sobre a credibilidade de um governo de Costa com os ingredientes da legitimidade constitucional e democrática. Mas, mais do que isso, vai ter de agir tendo em consideração que na política não há fórmulas matemáticas para avaliarem conceitos intangíveis como a estabilidade de um governo ou a sua credibilidade. O país que vive a ansiedade da incerteza, que receia os custos do experimentalismo de Costa, que olha para trás e receia o regresso dos anos de chumbo de 2011 e 2012 não precisa de ter mais o pesadelo da ruptura social e política que um choque frontal entre Cavaco, Costa e a esquerda provocará. Está pois na hora de Cavaco Silva encaixar as suas opiniões nas opiniões contrárias dos outros e cruzar os dedos para que dê certo. Na política, ter azia é tão natural como abrir champanhe.

2 – Paulo Cunha e Silva era uma pessoa de uma afabilidade enternecedora (mesmo quando se zangava ou discordava com veemência), de uma generosidade singular e de uma inteligência extraordinária. Foi sem dúvida uma das grandes personalidades do Porto e do país, nestes anos de penúria, frustração e angústia. O seu regresso à Cultura da cidade fez rebentar em poucos meses as amarras da clausura intelectual a que a autarquia votou o Porto durante os 12 anos precedentes. Com ele, a cidade voltou a ser de forma plena o que é e o que, no fundo, nunca deixou de ser: uma cidade que respira todas as culturas do mundo sem deixar de transpirar um ritmo muito próprio e muito seu. Por isso, o Porto tanto lhe deve. Por isso, o Porto perdeu esta semana um dos seus melhores. 

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