Eu, censora, me confesso

Eu a dar-lhe com Mozart e a insistir nas lições de piano e ela, com arremedos de precocíssima adolescência, a responder-me com a Chica, a Violetta ou a Soy Luna

Antes que me atirem pedras e me enxovalhem com epítetos de controladora ou tirana, cá vai uma declaração de princípio: sou contra qualquer tipo de totalitarismos e considero que em nenhuma circunstância alguém pode arrogar-se o direito de controlar, enviesar ou restringir a informação a que cada ser humano pode aceder. Dito isto, assumo o ímpeto ditatorial e censório que me invade sempre que tenho um vislumbre do teor dos programas televisivos que a minha filha mais velha consome com sofreguidão de mendiga sempre que acha que consegue iludir o meu controlo.

– Chica vam, vam, vam. Chica, chica vampiro –, ouço-a cantar desde a sala, em decibéis tão aparentemente não-humanos que nem o exaustor do fogão a consegue abafar. Mas se acontece ir ter com ela à sala para perceber onde se inspira tal talento musical, eis que a televisão muda de repente para a dulcíssima e inofensiva Princesa Sofia.

– Que vês, Rita?
– Nada.
– Estava a ouvir sobre uma Chica qualquer coisa…
– Mas a Chica Vampiro é memo fixe!..
– Desculpa?
– Não percebeste?
– Se o que quiseste dizer foi ‘mesmo fixe’, sim. Memo não vem no dicionário –, repreendo já sem paciência. Ao que ela me responde com um
ok

arrastadíssimo que, numa breve pesquisa no YouTube, descubro ser denominador comum de boa parte das séries que enxameiam os canais infanto-juvenis e cujas dobragens põem as candidatas a adolescentes que normalmente protagonizam estes enredos a falar com as mesmíssimas e irritantes entoação e pobreza vocabulares. É qualquer coisa como se vivêssemos num país cuja língua se resume em 300 páginas de dicionário. O suficiente, portanto, para fazer Luís de Camões arrancar o outro olho e arrepender-se de alguma vez ter queimado as suas pestaninhas para nos legar os Lusíadas.

De forma que era eu a dar-lhe com Mozart e a insistir nas lições de piano e ela, com arremedos de precocíssima adolescência, a responder-me com a Chica não sei das quantas, a Violetta ou a Soy Luna como grandes referenciais do seu desenvolvimento intelectual e artístico.

(Chica vam, vam, vam)

Sentindo que nem a obra infantil completa do José Barata Moura seria suficiente para obliterar tão pesadas referências, lá a pus a ouvir alguma pop no telemóvel (os auscultadores são da Soy Luna mas com isso posso bem) na linha dum Sérgio Godinho, dum António Zambujo ou mesmo duns Azeitonas para ver se, entre convites para ir ver os navios ao porto de Leixões e umas voltinhas de lambreta ou com o pica do 7, consigo preservar algum do seu potencial literário futuro.

Um dos problemas é que do Zambujo ao Miguel Araújo foi um trajecto muito curto (ou um indicador no ecrã do telemóvel) e ei-la, senhora de si, já a trautear o Dona Laura, a tal dona da vida que prescinde dos conselhos do pai, e a voltar às respostas impertinentes que mimetiza à velocidade supersónica dos Pokémon.

De modo que, ignóbil e cobardemente, peguei no comando da televisão e em menos de cinco minutos estavam bloqueados vários canais lá em casa. À noite, torpedeada com perguntas acerca do paradeiro desses canais e procurando contornar a previsível enxurrada de adversativas do tipo 'Mas as minhas amigas...', limitei-me a informar:

– Desapareceram. Se calhar avariaram…– desferi, com o remorso já embalado pelo regresso de bebezices como a Princesa Sofia, Little Einstein e Doutora Brinquedos à banda sonora da sala.

As respostas de gosto duvidoso diminuíram consideravelmente e a minha esperança é que este raid materno no seu universo de referências ajude a preservar nela o necessário para que um dia se comova com a Sinfonia das Canções Tristes de  Górecki e se deslumbre com a poesia da Duras ou com a complexidade da Insustentável Leveza do Ser do Kundera. Enquanto isso, vou insistindo na Luísa Ducla Soares que (menos mal) lhe vai alimentando a fantasia e enriquecendo o português, e, se me quiserem mimosear com epítetos como ditadora, força. Lido muito melhor com isso do que com os CartoonNetwork e Biggs deste mundo.

 

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