E se a troika tiver razão?

Comemorar Abril sem militares é quase como ir a um casamento sem a noiva

1. Depois da Irlanda e de Portugal, até o patinho mais feio da crise do euro, a Grécia, parece estar em condições de regressar à amena normalidade dos mercados. Se há apenas algumas semanas o que estava em cima da mesa era a urgência de um terceiro resgate, Atenas fez esta semana um leilão da dívida que, embora sindicado, obteve uma procura muitas vezes superior à oferta. A “exuberância irracional” dos mercados e a mudança súbita da narrativa da crise da Europa periférica obriga a esquerda ortodoxa ou o academismo keynesiano a uma pergunta incómoda: e se Angela Merkel, o FMI e Pedro Passos Coelho tiverem razão? E se, afinal, a terapia de choque por eles defendida e aplicada for um sucesso?

Ninguém com um mínimo de honestidade intelectual pode renunciar a esta pergunta. Apesar de a maioria das previsões sobre a dívida, o défice ou a gravidade da recessão se terem revelado erradas, apesar de os modelos do FMI sobre o impacte da austeridade no crescimento terem falhado, apesar dos custos económicos e sociais estarem muito para lá do prometido, é evidente que por estes dias a tímida aceleração da economia ou a queda dos juros no mercado secundário bastam para alimentar a suspeita que, à última da hora, a austeridade pode ser redentora. E expansionista. Na sexta-feira, o Presidente da República tratou aliás de o enunciar, dizendo que o rigor orçamental não é um fim, mas um meio para o crescimento.

Mas os putativos sinais de sucesso da troika podem igualmente ser usados para sublinhar o absurdo das suas teses e, ainda mais, para adensar a suspeita de um clamoroso falhanço histórico da Europa alemã na gestão da crise. O FMI, Merkel e Passos teriam de facto razão hoje se o ajustamento que definiram e aplicaram com zelo tivesse resolvido de facto os problemas estruturais das finanças públicas e da economia. Ora nada disso se comprova. Basta coleccionar algumas notícias da última semana para se perceber que o défice se reduz com amnistias fiscais, com o maior crescimento da carga fiscal sobre o trabalho da OCDE, que as empresas portuguesas de dimensão são tão raras como estrelas em noites de nevoeiro, que continuam a ser as mais endividadas da Europa.

Se de um momento para o outro as agências de rating se sentem obrigadas a rever as suas notações e se os mercados se deslumbram com o admirável mundo novo da dívida considerada “lixo” é porque vivemos tempos “em que o capital se movimenta como uma manada: ordenado mas desordeiro”, na feliz definição de Pedro Santos Guerreiro, este sábado no Expresso. É a expressão de uma lógica absurda e irracional, capaz de reforçar as teses dos que sempre disseram que esta crise era evitável. Porque se Portugal tem hoje condições para pagar os juros mais baixos dos últimos sete anos, nada mudou radicalmente para que não o pudesse ter feito na Primavera de 2010, quando a troika aterrou na Portela.

Se hoje os mercados se interessam pelas nossas obrigações do tesouro estando o défice em 4.9% (com receitas extraordinárias) e a dívida quase nos 130%, em 2010 o défice era pior (9%), mas a dívida era bem mais simpática (94%). Quer dizer que se hoje a situação é claramente melhor, não há razões para dizer que há quatro anos era irrevogavelmente péssima.

O que estas comparações nos sugerem é que em 2010 talvez tivesse bastado um aviso eloquente como o que Mario Draghi fez no Verão de 2012 para evitar que as agências de rating e os mercados deixassem Portugal sem rede. Bastaria talvez que Merkel e os demais líderes europeus, com Durão Barroso à cabeça, produzissem um discurso de união suficientemente claro e contundente para que a confiança não se dissipasse e permitisse a Portugal aplicar um programa de ajustamento que, tendo de ser duro e custoso, não exigiria o grau de sofrimento que se experimentou.  

Passos Coelho poderá dizer sem que o desmintam que está a cumprir, pode dar-se até ao luxo de anunciar obras e de baixar salários para regressar à normalidade da política; mas os que o criticam por ter sido um tão fiel jardineiro do quintal ideológico do FMI ou da ortodoxia de Angela Merkel têm também motivos para suspeitar que muito do sofrimento poderia ter sido evitado. Resta saber se num clima de maior distensão teria sido possível fazer muitas das reformas que se impunham a um país fossilizado pelos lobbies e dependente do mercado protegido. Mas essa é já outra conversa.

2. O tom das declarações de muitos capitães, com destaque para Vasco Lourenço não esconde a irritante presunção de que eles são em última instância os donos do 25 de Abril. Porque foram eles que o fizeram, e isso é óbvio, mas também porque são eles a sua reserva moral. A liberdade que cada um de nós usufrui é tributária da sua existência, cada consulta no serviço nacional de Saúde é dependente do seu altruísmo revolucionário. Por isso não concebem que o 25 de Abril se comemore sem os seus doutos discursos onde aplicam todo o seu zelo de guardiões do regime, sempre prontos para denunciar os seus desvios.

Apesar dessa irritante pretensão de exercer tutela numa sociedade livre, não faz sentido celebrar os 40 anos da revolução sem a sua presença e sem as suas (por vezes histriónicas) palavras na Assembleia da República. Não é porque eles tenham um direito de falar. É porque a democracia lho concede. Uma comemoração é sempre uma evocação da memória e a prestação de um tributo aos que fizeram acelerar a história. Comemorar Abril sem os militares é quase como ir a um casamento onde falta a noiva. Eles podem ser arrogantes, podem ter visões distorcidas sobre as latitudes da democracia, podem fazer a apologia de modelos ou de sistemas hoje datados ou inaplicáveis, mas essa é apenas uma faceta da liberdade de pensamento e de expressão que ajudaram a restaurar em Portugal.

Bem sabemos que o país está a passar por um processo rápido de desmemorialização, que tenta resumir as biografias e os contributos de homens como Mário Soares, Freitas do Amaral ou até Cavaco Silva a esfinges de um passado esquerdista e nefasto. A arrogância com que uma mulher culta, inteligente e de insuspeito timbre democrático como Assunção Esteves respondeu à exigência do discurso dos militares é filha desse desdém pelo passado recente. Na solenidade da data que se aproxima, faça-se uma pausa. Porque, de duas, uma: ou se comemoram os 40 anos do 25 de Abril como deve ser, e isso implica que os militares que o fizeram tenham a palavra, ou toda aquela cerimónia se transformará numa encenação sem sentido. Sem os militares (e sem Mário Soares), restarão as saudades da democracia popular do Bloco, o mito do eterno retorno do gonçalvismo exposto pelo PCP, o incómodo do PS e a doce indiferença das alas J do CDS e do PSD.

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