“Destruição criativa”

A saída de Ana Drago do Bloco de Esquerda no passado fim-de-semana colocou os holofotes de novo sobre o estado de desagregação deste partido. Um esfarelamento que foi identificado já em 2011, quando nas legislativas o seu grupo parlamentar desceu radicalmente de 16 para oito deputados, e que foi confirmado com a saída de Francisco Louçã de coordenador do partido, com o argumento de que a sua ausência abriria espaço a uma renovação dinamizadora daquela força política.

O que surge como hipótese de explicação do processo que se vive no BE relaciona-se com um movimento mais amplo e que vai para além das fronteiras de Portugal. Estende-se à esquerda em geral e surgiu após a falência dos regimes comunistas do Leste da Europa, que levou ao colapso dos partidos comunistas, sendo o PCP um caso raro de sobrevivência política.

Este movimento – de que tem resultado a hegemonia na Europa de uma cultura política e de uma ideologia neoliberais – inclui também, como é evidente, a falência dos projectos programáticos sociais-democratas. O problema é tão vasto que se estende, em Portugal, também ao PS. Basta olhar para o resultado das europeias noutros países, para perceber como a crise da social-democracia europeia é uma ferida exposta.

Para além das diferenças de personalidade, de atitude e de cultura política entre António José Seguro e António Costa, o que está em causa no PS é também o encontrar de soluções e de conteúdos que resultem num projecto de programa de governação para Portugal, que até agora o PS ainda não conseguiu apresentar, sendo as 81 medidas apresentadas por Seguro nas europeias uma compilação de ideias generalistas, sem sistematização nem enquadramento, mas também sem conteúdo real. O BE é uma parte integrante dessa crise e nasceu já dentro de uma dinâmica de procura de soluções e de busca de caminhos para a esquerda europeia, ainda que numa dimensão nacional.

É verdade que as divergências, rupturas, cisões que se vivem hoje no BE parecem, aos que têm cinquenta ou mais anos, uma reedição das “guerrinhas” da extrema-esquerda antes e depois do 25 de Abril. Uma espécie de remake do partido do táxi, com a tendência do banco da frente e a tendência do banco de trás. Mas quer o carácter quizilento quer o espírito de capela que assola a política portuguesa não são exclusivos da esquerda, nem apenas relíquias do passado.

Mas quando surgiu em 1999, para se candidatar sem êxito às europeias de Junho, e eleger dois deputados (Francisco Louçã e Luís Fazenda) à Assembleia da República, o BE era já uma experiência de tipo frentista que procurava dar eficácia de representação político-parlamentar a grupos que estavam fora do sistema representativo institucional. Assim, juntava a UDP de Luís Fazenda, que desde 1980 não tinha nenhum eleito no hemiciclo de São Bento, e o PSR de Francisco Louçã, que em 1995 estivera à beira de ser eleito pelo círculo de Lisboa.

Força integrante do BE foram também os ex-comunistas da Política XXI, o novo nome do antigo MDP, herdado pela associação Plataforma de Esquerda que reuniu dissidentes do PCP, na sequência da cisão que surgiu naquele partido após o Golpe de Estado de 19 de Agosto de 1991, na União Soviética.

É a tendência que surgiu desta corrente interna do BE – e que foi liderada por Miguel Portas e que reuniu também católicos de esquerda que nada tinham que ver com o PCP, como José Manuel Pureza – que agora está em parte no grupo Fórum Manifesto que abandonou o BE com Ana Drago. E que é uma das múltiplas sensibilidades que coexistiam no BE e que – todas elas, ao coexistirem em liberdade e respeito mútuo – faziam uma das mais-valias do BE.

Uma força que teve o mérito de procurar encontrar novas formas de contribuir para a busca de caminhos para a esquerda. Não só ao assumir que a política partidária existe para disputar o poder e desempenhar a governação ou influenciar quem governa – por isso o objectivo de eleger deputados à Assembleia da República. Mas o BE teve também o mérito de forçar a modernização do ideário programático da política portuguesa.

Abandonando o carácter revolucionário dos partidos que estiveram na sua origem, o BE teve sempre presente a defesa das causas da social-democracia, ao lado de um ideário que é estruturante das democracias modernas e que passa pela defesa dos direitos humanos, todos eles, incluindo os direitos individuais. Uma visão democrática da sociedade que em vários países da Europa é comum quer à esquerda quer à direita. E esse papel o BE cumpriu já.

Resta esperar para perceber o que vai acontecer à esquerda – e não só em Portugal –, e que novo mundo político-partidário irá sair desta espécie de “destruição criativa” (Schumpeter) que se vive na política europeia.

Sugerir correcção
Comentar