Bárbara, Carrilho e o PÚBLICO

Qualquer pessoa bem formada acha que o combate à violência doméstica deve ser uma prioridade nacional e impressiona-se muito com o facto de a cada nove dias uma mulher ser assassinada pelo seu companheiro ou ex-companheiro em Portugal.

A dimensão do problema é assustadora: as ocorrências registadas na PSP e na GNR superam as 20 mil por ano – estamos a falar de 55 pessoas a ser agredidas diariamente. Mas quando saímos dos números abstractos e descemos até às situações concretas, como é o caso das notícias que envolvem Manuel Maria Carrilho e Bárbara Guimarães, aí as mesmas pessoas bem formadas começam logo a torcer o nariz, lamentando a “lavagem de roupa suja”.

Bater numa mulher é noticiável em forma de relatório ou de estatística. Ao nível da vida dura, das acusações mútuas e das nódoas negras, parece que já não é. Nesse caso, transforma-se rapidamente numa coisa “lá deles”. Os jornais respeitáveis que fiquem de fora – mesmo que exista um despacho de acusação do Ministério Público envolvendo duas figuras públicas, mesmo que uma antiga mulher tenha dado a cara ao DN para confirmar actos de violência, mesmo que tenha havido uma longa série de entrevistas, depoimentos, e até conferências de imprensa inqualificáveis por parte de Carrilho. Tudo público. Mas nada para o PÚBLICO.

“A verdade é que nós não estamos a par dos factos. Espere-se que em tribunal tudo se esclareça”, escreveu um leitor numa caixa de comentários. “Custa-me ver o PÚBLICO a ser arrastado para este tipo de mexericos”, podia ler-se numa carta à directora. “É por demais evidente que um jornal como o PÚBLICO, dito de referência, não deveria colocar os seus jornalistas a transcreverem um despacho do Ministério Público sobre a acusação a Manuel Maria Carrilho. Sinceramente, acho que há matéria bem mais importante para publicar”, queixou-se um leitor ao provedor deste jornal.

A violência doméstica foi tornada crime público em 2000, exactamente para promover a quebra do silêncio e impedir que estes casos morressem entre quatro paredes. Marinho Pinto, enquanto bastonário da Ordem dos Advogados, chegou a opor-se a essa tipificação, argumentando que ela inviabiliza a desistência do processo, ainda que a vítima assim o pretenda. Ora, a ideia é precisamente essa – impedir a chantagem do mais forte sobre o mais fraco. Essa decisão teve evidentes efeitos positivos, dando coragem às mulheres (sobretudo elas) para enfrentarem os seus medos e denunciarem os abusos. Mas, pelos vistos, ainda falta dar mais um passo: compreendermos todos, enquanto leitores de jornais de referência, que existe uma responsabilidade social em noticiar e investigar a violência doméstica, por mais escabroso que um caso nos pareça. Classificar o que se está a passar entre Carrilho e Bárbara como “mexericos” não é uma manifestação de bom gosto – é apenas uma manifestação de insensibilidade para com uma das maiores chagas sociais deste país.

Por sugestão do autor foi eliminado um parágrafo do texto às 16h23 por não estar correcto.

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