Baralhar e dar de novo

Tudo pode acontecer daqui para a frente, quando a Europa se prepara para entrar na sua terceira recessão desde o início da crise financeira, a deflação continua a ser uma ameaça e o FMI, o G20, o Banco Mundial dizem que o crescimento mundial vai desacelerar por causa da Europa.

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1. Seria, talvez, esta a melhor conclusão do que se tem passado nos últimos dias na Europa. Claro que não é fácil rever uma estratégia para salvar o euro e garantir a sua governabilidade, considerada desde o início sem alternativa, que foi imposta pela Alemanha e à qual faltou sempre uma parte: como equilibrar as contas públicas, evitando o efeito destruidor da austeridade, praticada ao mesmo tempo nos países ricos e pobres, indisciplinados ou rigorosos, mesmo que em doses diferentes.

Na sexta-feira, a ortodoxa Finlândia (o país que mais deu dores de cabeça a Bruxelas em matéria de contribuição para os resgates) viu o seu “triplo A” ser reduzido para um “duplo A” pela Standard & Poor’s. Já só restam a Alemanha e o Luxemburgo. Vale a pena lembrar o que disse em 2011 o actual primeiro-ministro finlandês, Alexander Stubb, agora às voltas com uma inevitável recessão, citado pela Reuters: “Os princípios darwinistas devem aplicar-se à zona euro e as economias mais fortes devem ter a decisão final sobre a maneira de dirigi-la”. Agora lembra que a crise na Ucrânia e o abrandamento da economia russa trocaram as voltas à economia finlandesa.

Na verdade, tudo pode acontecer daqui para a frente, quando a Europa se prepara para entrar na sua terceira recessão desde o início da crise financeira, a deflação continua a ser uma ameaça e o FMI, o G20, o Banco Mundial dizem que o crescimento mundial vai desacelerar por causa da Europa. Mario Draghi, que tem de novo a crise nas mãos, tenta avançar com cautela nas medidas não convencionais para estimular a economia europeia, com um olho posto em Berlim à espera de uma ligeira mudança. Por enquanto, apenas pode escutar as palavras de Wolfgang Schauble insistindo em que o caminho continua a ser o mesmo e é para cumprir.

2.Vale, aliás, a pena começar pela Alemanha, que esta semana andou nas bocas do mundo por duas razões mais ou menos inesperadas. A primeira, quase hilariante pelos seus contornos, foi o estado das suas Forças Armadas. A questão foi debatida no Bundestag a partir de um relatório a que os jornais tiveram acesso, que as descreve como um desastre. Meia dúzia de exemplos: só um dos seus quatro submarinos funciona; só 70 dos seus 180 tanques Boxer estão em condições operacionais; apenas sete da sua frota de 43 helicópteros da Marinha podem voar, etc. É irresistível reproduzir um título de um jornal alemão, citado pela Reuters: “Se os tanques Boxers se mantêm de pé é graças à laca da ministra da Defesa”. Úrsula von der Leyen é criticada por gostar mais de se deixar fotografar do que de tratar da Bundeswehr. Médica e mãe de sete filhos, quer ser a sucessora de Angela Merkel na CDU. Judy Dempsey, do Carnegie Europe, recordava há dias que a Alemanha está a ter dificuldades para trazer os seis soldados no Afeganistão de volta a casa porque os aviões estão avariados. Dos 56 há apenas 24 operacionais. A analista também lembra que a Alemanha viu-se obrigada informar a NATO de que não consegue arranjar os aviões pedidos para patrulhar a fronteira dos Bálticos. Os exemplos são infindáveis. Para um país a quem toda a gente pede que assuma maiores responsabilidades internacionais, não é o que se estava à espera. A redução do orçamento da Defesa para 1,3 % do PIB pode ser uma explicação. A falta de prioridades é outra. Talvez valesse a pena explicar aos alemães que as despesas com a defesa têm de aumentar num mundo cada vez mais caótico, incluindo à volta das fronteiras da Europa.

A segunda questão que irrompeu no debate alemão tem a ver com a economia. Marcel Fratzscher, director do DIW (Instituto Alemão para a Investigação Económica), conselheiro habitual do Governo, acaba de publicar um livro sobre “A Ilusão Alemã”, que aponta para as fragilidades de uma economia que se apresenta como o modelo a seguir. As infra-estruturas de transportes estão envelhecidas e ninguém as repara. O desemprego baixo deve-se aos “mini-jobs” mal pagos e em part-time. O investimento caiu para 17 por cento e cada vez mais as grandes empresas preferem investir fora da Alemanha, por exemplo nos EUA. A produtividade cresceu muito pouco nos últimos anos (entre 2007 e 2002, 0,3%, para 0,5 na Dinamarca, 0,7 na Áustria, 0,9 no Japão ou 1,5 nos EUA e 3,2 na Coreia). Os salários continuam a perder valor real. Só exportar, exportar, exportar torna a economia alemã particularmente vulnerável a cada desaceleração da economia europeia e mundial. O director do DIW lembra que a Alemanha está em condições de se financiar a custos baixíssimos e era o que devia fazer para estimular a economia. O último sinal de alarme foi a queda inesperada das encomendas à indústria de 5,7% no segundo trimestre. Como escreve o Telegraph, “a Alemanha apenas parece saudável porque as outras economias europeias estão moribundas.”

3. George Osborne, o ministro das Finanças britânico, acaba de dizer que o maior perigo para a retoma no Reino Unido é a recessão europeia. Não falou do facto de Nigel Farage, o líder do UKIP, ter conseguido o feito histórico de enviar para Westminster o seu primeiro deputado, numa circunscrição do Sul de Londres cujo deputado saiu do Partido Conservador para se juntar ao UKIP. O Labour ia perdendo outra eleição intercalar num círculo eleitoral que quase sempre lhe pertenceu e que agora manteve por uma margem mínima de votos sobre o Partido da Independência. O sistema eleitoral britânico talvez não permita uma entrada significativa do UKIP no Parlamento, nas eleições de Maio. O problema maior é que a única resposta que David Cameron parece conseguir dar-lhe é empunhar as suas próprias bandeiras, fazendo-as suas. “O meu coração não ficará partido se sairmos da União Europeia”, foi a sua última grande tirada. A primeira coisa que prometeu depois da vitória do UKIP foi endurecer ainda mais as políticas de imigração. Ed Miliband está a sofrer pressões internas para fazer o mesmo.

4.Nós, por cá, estamos confrontados com um país em que nada parece fazer sentido. Por ideologia ou por incompetência, o Governo não consegue adaptar o seu discurso à realidade. O credo de Passos Coelho é que os mercados resolvem tudo e os governos não têm nada a ver com as empresas privadas. De pouco consolo lhe vale a sua ideologia. A explosão do BES e a queda da PT são dois acontecimentos de uma dimensão tal e com tamanhas consequências que olhar para o lado, fingindo que não é nada com ele, é pura e simplesmente impossível. Ou então ridículo. Todos os dias descobrimos um pouco mais de verdade sobre o comportamento pouco avisado do regulador e do Governo, enredados nas suas próprias contradições. Um pequeno exemplo: a venda do Banco Novo já foi para um prazo de cinco anos, depois passou para seis meses, depois voltou aos dois anos. A prova de que ninguém parece verdadeiramente saber o que anda a fazer. E lá se vai a credibilidade externa,  o grande aquis do Governo, exibido com orgulho a um bando de papalvos. E lá ficámos de novo em lixo, com imensa admiração pela injustiça.

Quando se soma a isto o que se está a passar na Educação e na Justiça, então a incompetência parece estar acima na ideologia. Seja o que for, começa a ser penoso respirar.
 

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