As televisões adoram os saltos altos dos famosos

Começou antes, mas durante os dois dias do fim-de-semana foi praticamente em contínuo. A cobertura noticiosa do congresso do CDS-PP seguiu as regras habituais no jornalismo televisivo, com um directo permanente que nos fazia duvidar se, em vez da RTP, da SIC ou da TVI não teríamos sintonizado sem querer a TV CDS-PP. Não é só nos congressos dos partidos nem sequer apenas na política que este tipo de cobertura ininterrupta acontece, mas é evidente que as consequências são de maior peso quando se trata de doses maciças de propaganda política sem filtro e de críticas e ataques em catadupa contra o governo e a maioria parlamentar que o apoia como aquelas a que milhões de portugueses foram submetidos durante os últimos dias em todos os canais de televisão. Críticas e ataques, sublinhe-se, feitos com escassas preocupações de contextualização ou contraditório, como se o simples facto de se tratar de uma “cobertura em directo” eliminasse todas as obrigações de equilíbrio ou equidade.

As razões percebem-se sem dificuldade. Um directo consegue encher a grelha sem grandes despesas e existe sempre a esperança (quando não a certeza) de que a simpatia demonstrada para com as forças políticas que servem o poder económico acabe por ser recompensada. Mas o jornalismo devia ser outra coisa. O jornalismo não deve ser um altifalante do poder e os jornalistas não devem ser pés de microfone. O jornalismo deve ser um mediador independente, um intermediário que acrescenta valor à informação porque a selecciona, a valida e a comenta com isenção e não uma caixa de ressonância que apenas amplifica a mensagem seja ela qual for. O jornalismo deve relatar os acontecimentos de acordo com a sua relevância, reproduzir e pôr em confronto diferentes versões relevantes desses acontecimentos, tentar apurar os factos, difundir opinião e promover o debate.

Ora acontece que, ao difundir as imagens e os discursos de um congresso partidário sem qualquer filtro ou comentário crítico, está apenas a… fazer propaganda. É evidente que há justificações para fazer directos, em certos casos. Haveria razões para transmitir em directo o discurso de Assunção Cristas ou o de Paulo Portas - sendo que mesmo isso não seria indispensável, desde que fosse feita uma rápida e competente síntese nos minutos seguintes. Mas é pelo menos discutível que a coisa mais importante que os jornalistas tinham para mostrar, ao longo deste fim-de-semana em que o mundo não parou, fossem os discursos de todos os dirigentes centristas que se foram sucedendo no púlpito de Gondomar. Mais: é evidente que, para a maioria dos telespectadores, as intervenções das dúzias de dirigentes do CDS-PP que se sucederam no palco possuíam pouco interesse e transportavam pouca informação porque careciam de contexto e de historial. Se, como acontece nos jogos de futebol, as intervenções no congresso do CDS-PP fossem acompanhadas pelos comentários de dois especialistas, eventualmente até com visões diferentes, que nos lembrassem quem eram os discursantes, a que grupo pertencem e o que tinham dito ou defendido há dois meses ou há dois anos, o directo poderia fazer sentido mas, no formato de janela aberta para Gondomar, querendo transportar-nos a todos para o congresso, não faz. Pior: para acompanhar os directos dos discursos, as várias televisões decidiram fazer entrevistas aos mesmíssimos discursantes, oferecendo assim uma dupla plataforma para alguns protagonistas.

Uma preocupação maior que o jornalismo deve ter é a de equidade, a de dar um tratamento justo a todos os acontecimentos, organizações e pessoas, usando dos mesmos critérios para avaliar a sua relevância e decidir da sua cobertura. A cobertura do congresso do CDS-PP não devia ter, por isso, como teve e como costuma ter, uma maior importância que a dada às reuniões similares do Bloco de Esquerda ou do PCP, partidos de peso parlamentar equivalente e cuja relevância no actual momento político não se pode considerar menor que a do CDS.

Há quem defenda que a maior “notoriedade pessoal” dos dirigentes do CDS-PP justifica uma maior cobertura do partido a que pertencem. Trata-se, no fundo, de justificar a maior atenção mediática pelo facto de se tratar de “famosos”, que suscitariam maior curiosidade que os “desconhecidos” que discursam na convenção do Bloco de Esquerda ou no congresso do PCP. O argumento é iníquo e tautológico, pois justifica a maior cobertura dos actos de certas pessoas apenas pelo facto de essas mesmas pessoas terem sido objecto de maior atenção mediática. É um argumento de classe, de defesa do privilégio pelo privilégio, e que, se pode parecer um critério de noticiabilidade, é evidente que não o pode ser pelo facto de não ser um critério de equidade mas sim um critério gerador de iniquidade.

Aquilo que o CDS-PP realizou neste congresso pela mão de Assunção Cristas e com a cumplicidade activa das televisões, foi o início do seu makeover. Mais do que na substância política - que veremos no futuro se existe e qual será - esse makeover consiste numa aposta nos saltos altos de Assunção Cristas, na relativa juventude dos seus novos dirigentes e no glamour centrista. O CDS-PP tem todo o direito de o fazer. As televisões é que não têm o direito de nos enfiar pela goela horas de propaganda encapotada.

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