As presidenciais e a esquerda

A candidatura de António Guterres a Presidente da República parece um dado adquirido a que falta apenas o próprio oficializar a sua disponibilidade.

Ainda que Guterres nunca tenha dito que é ou pensa ser candidato, também nunca o desmentiu. E não só não desmentiu, como foi deixando fazer o seu caminho a ideia de que o é. Assim como foi dando espaço para que a ideia ganhasse apoios formais no universo da esquerda, em particular do PS, onde os dois candidatos às primárias para primeiro-ministro, o actual secretário-geral, António José Seguro, e o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, manifestaram o seu apoio. (PÚBLICO 20/07/2014 e 03/08/2014)

Guterres tem sabido gerir o processo de tornar a sua candidatura inevitável. Foi fazendo o caminho das pedras e lançando as peças do puzzle do seu futuro. De tal modo que logo em 2012, numa entrevista, tratou de assumir responsabilidades pelos erros cometidos como primeiro-ministro: "Todos aqueles que exerceram funções em Portugal têm a responsabilidade no facto de nós, até hoje, ainda não termos sido capazes de ultrapassar esses défices tradicionais, essa incapacidade tradicional para competir em plano de verdadeira igualdade com os nossos parceiros, nomeadamente no quadro europeu."

De seguida, em 2013, perante a pergunta sobre se pretendia regressar à política portuguesa, que lhe foi feita por Adelino Cunha, autor da sua biografia, Guterres respondeu: "Neste momento tal hipótese não me passa sequer pela cabeça." Mas já este ano, no prefácio do livro que Fernando Esteves fez sobre Jorge Coelho, Guterres declara: "Não quero ser candidato, mas não faço juras eternas; há sempre uma probabilidade, mesmo que mínima, de isso acontecer." E há oito dias, perante a notícia de que ia avançar, anunciou através de Jorge Coelho, que ainda não tinha falado com ninguém sobre o assunto, "nem com ele próprio". (Expresso 23/08/2014)

É pouco credível que haja espaço para o agora presidente do ACNUR vir dizer que não é nada com ele e que não quer desempenhar esta função de candidato. O que será interessante de seguir é a receptividade ao regresso à política portuguesa daquele que se demitiu após a derrota nas autárquicas de Dezembro de 2001, alegando então que o fazia porque considerava que a permanência do PS no poder, após aquela derrota eleitoral quando o seu Governo era de minoria, iria gerar um "pântano".

Mesmo sendo sido ele o "pai" de momentos como o da Cimeira de Lisboa e o da entrada no euro, pode sempre alegar perante as criticas que isso aconteceu em pleno clima de glória pela nova fase de progresso da União Europeia que tais passos significaram, e que em nada deixava prever o desastre das crises da dívida soberana que cerca de uma década depois assolaram vários países da UE, entre eles Portugal.

Será curioso de perceber como irá Guterres viver com o currículo de ter sido um dos primeiros socialistas europeus a aderir à influência neoliberal no sentido de abrir a social-democracia à prevalência do mercado numa fase da história em que a globalização passou a ser determinada pela revolução tecnológica e informática.

E mesmo decisões como a de negociar com o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, um referendo nacional à lei da Assembleia da República que despenalizava o aborto, anunciando-o na madrugada a seguir à votação na generalidade dessa lei e assim desautorizando o seu grupo parlamentar, poderão agora ser lembradas pelos que se lhe opuserem. A expectativa é aqui perceber até que ponto prevalecerá a memória de um primeiro-ministro que deixou obra importante no domínio da construção do Estado-Providência em Portugal, como a criação do Rendimento Mínimo Garantido, a assistência à terceira idade e o ensino pré-primário.

A certeza que está já criada quanto à possibilidade da candidatura de Guterres é acompanhada por uma outra certeza, a de que este nome não preenche todo o espectro político da esquerda em Portugal. A clivagem - que hoje divide o PS de partidos como o PCP e o BE, bem como de outros partidos extraparlamentares como o Livre, ou ainda de movimentos cívicos - é marcada por linhas de fronteira que dividem os que bebem no legado de Guterres e os que rejeitam, pelo menos em parte, essas políticas. E são clivagens que vão além do que possa ser a resposta à crise e à assinatura do Memorando que impôs a política de austeridade.

Daí que seja previsível o aparecimento de mais candidaturas à esquerda, mais concretamente à esquerda do PS. E aqui a expectativa é a de saber se Francisco Louçã ou Carvalho da Silva não irão ocupar uma área da esquerda que o antigo primeiro-ministro socialista não preenche.

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