A palavra injustamente maldita

A austeridade serve, entre outros propósitos, para limitar o “agravamento tendencial da balança de pagamentos” e para conter “uma expansão acelerada do consumo”. É, por isso, uma necessidade inultrapassável. Lida ou dita, esta apologia da austeridade há-de ser imediatamente associada a Pedro Passos Coelho, a Paulo Portas ou aos ministros das Finanças deste Governo. Não passa pela cabeça de ninguém que tivesse sido inscrita na Batalha da Economia que fez parte do programa do V Governo Provisório, em 1975 – exactamente, o que foi chefiado por Vasco Gonçalves. Claro que nas entrelinhas deste elogio à austeridade estavam os desejos de acabar com “os padrões de consumo típicos das sociedades burguesas, desadaptados às possibilidades materiais da economia portuguesa” para se poder caminhar em direcção a uma “sociedade socialista”. Mas há no seu alcance uma dimensão ética que a esquerda de hoje faz questão de esquecer por completo.

No léxico da política dos últimos anos – e na dos anos que se adivinham -, raramente uma palavra foi alvo de tantas paixões, de tantas interpretações e de tanta raiva. O dicionário da Porto Editora diz-nos que “austeridade” quer dizer “rigidez nos princípios, hábitos ou opiniões”, embora possa significar também algo que é “severo” ou “não flexível” ou ainda “áspero”, “que exige esforço”. Com esta abrangência, tanto pode ser uma coisa boa, como má. A austeridade da arquitectura românica é apreciável, a frugalidade franciscana exibe uma face do Cristianismo venerada e, como nos mostra o programa do V Governo Provisório, há na sua aplicação à política uma possível aura de redenção moral e de eficiência económica. A sua abrangência, porém, morreu com o programa de ajustamento aplicado com este Governo. A austeridade tornou-se a paragona de tudo o que de mal nos aconteceu; deixou de ser um conceito elástico, radicalizou-se e passou a servir de bandeira a uma caricatura ideológica do Governo – o tal “governo austeritário”.

O país que venera o novo-riquismo, que baseia parte importante da avaliação do sucesso individual na marca do telemóvel ou do carro, encara-a como um regresso aos tempos bafientos do salazarismo, com as suas casinhas modestas e roupas remendadas enquanto o ouro se entesourava no banco central. A esquerda à esquerda do PS encara a austeridade como um meio de o capitalismo, ou dos mercados, que é a mesma coisa, imporem a hegemonia dos ricos sobre os pobres. O PS, hesita e avança com um programa de sombras chinesas onde a austeridade se adopta ao mesmo tempo que é vilipendiada. Passos Coelho que na oposição a recusou (o PEC IV foi chumbado em 2011 por instituir a austeridade) e que depois a elegeu como receita salvadora para um país piegas e enquistado nas sinecuras do Estado trata agora de a considerar como um resquício do passado. No fundo, ninguém escapa a essa simplificação que tende a afogar a austeridade na violência dos cortes sem deixar emergir o lado positivo que nos convida a ajustar o que consumimos ou o que investimos às “possibilidades materiais da economia portuguesa”, como se defendia em 1975.  

Ainda antes que os mais cínicos se dediquem a perorar se esta percepção faz, ou não, o jogo do Governo, dos ricos ou da troika, convém sublinhar que os cortes impostos aos portugueses nos últimos anos são uma violência que só em parte se enquadram no real significado de austeridade – são-no no sentido da “rigidez”, da “penosidade” ou da “exigência de esforço”. Por convenção, a Europa da era da troika adoptou esta palavra, mas podia ter adoptado outra ou talvez até uma expressão mais sofisticada. Quando, em 1983, Mário Soares se viu obrigado a seguir as regras do FMI, tratou de avisar que a hora era de “apertar o cinto”. Podia-se falar em empobrecimento forçado, no emagrecimento do Estado ou no endurecimento fiscal. Vítor Gaspar e o FMI preferiam falar em “cortes adicionais” ou em “medidas adicionais”. No auge do aperto, Paulo Portas deu o melhor de si ao resumir o “filme de terror” denunciado na altura pelo deputado João Semedo, do Bloco, numa mera e vaporosa “prudência orçamental”. Neste embrulho de notícias difíceis, o lado bom da austeridade foi apagado. A grande lição colectiva que estamos a aprender com graves custos, a de que não devemos acreditar em profetas que anunciam amanhãs que cantam, corre assim o risco de se perder.

Basta ver o que se diz nos preliminares da campanha. O Governo tenta demarcar-se sistematicamente do PS ao dizer que os socialistas se dispõem a repetir todos os erros do passado, mas esse discurso não basta para dissimular o seu desejo de regressar, ainda que ao de leve, a esse mesmo passado. Num dia, a Coligação diz que não haverá mais austeridade, no outro reclama-se guardiã da prudência e no terceiro desmultiplica-se a aumentar os cálculos sobre a devolução da sobretaxa de IRS ou sobre os milhares de milhões que gastará a mais do que o PS na requalificação urbana. Quanto ao PS, já se sabe, fará tudo o que estiver ao seu alcance para, em nome do crescimento, voltar a regar a economia com dinheiro - nos interstícios de um programa prudente vai sobrando espaço para promessas de mais investimento público, menos feriados ou mais apoios sociais. E muito mais além, para o Bloco, o Livre ou o PCP o sol nasce todos os dias e a austeridade não passa de um capricho que pode enterrar-se numa noite qualquer.

Passos ou Costa, Portas ou Jerónimo acreditam que dá mais votos dizer que se gasta mais do que afirmar que se pode e deve gastar menos - ou o mesmo. Por muito que se tentem moderar, o velho vício do politiqueiro vendedor de ilusões sobreviveu a quase cinco anos duros de ajustamento imposto pela bancarrota iminente. Sempre que se distraem, foge-lhes o pé da chinela e renegam uma ética política que se alimenta do realismo, da frugalidade, do rigor ou da aposta numa “batalha pela economia” que vai continuar a exigir esforço e recursos escassos.  

É por isso que a palavra austeridade devia deixar de ser tão maldita. Entre a frugalidade salazarenta e a ideologia redentora dos cortes que em tempos guiou os espíritos do Governo, há uma dimensão da austeridade que é essencial conservar no futuro. Uma dimensão que tem um lado ético, mas também uma utilidade económica. Mais do que um conceito da direita, a adopção desse código de valores – viver de acordo com as possibilidades -, é uma marca da esquerda democrática. E não é preciso regressar aos tempos de Vasco Gonçalves e do Verão Quente para o provar. Basta ler o social-democrata da velha guarda Tony Judt no seu Chalé da Memória. “O oposto da austeridade não é a prosperidade mas o luxo e a volúpia (…) Se queremos governantes melhores, temos de exigir mais deles e menos para nós próprios”. Para que a democracia deixe de ser uma fogueira de vaidades e de mentiras travestidas de promessas, “poderá ser necessária alguma austeridade” dizia o historiador. 

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