A debilitação do debate democrático

À esquerda e à direita estes novos marialvas do discurso político proclamam certezas, lançam anátemas, estabelecem proscrições, anunciam radiosos caminhos

1. Philippe Bilger é um magistrado honorário francês e preside a uma instituição designada "Instituto da Palavra".

1. Philippe Bilger é um magistrado honorário francês e preside a uma instituição designada "Instituto da Palavra". A sua preocupação reside na perda de substância da palavra pública e são da sua autoria as seguintes considerações: "A degradação da linguagem conduz ao empobrecimento do pensamento. Já não estamos habituados, quando falamos de um assunto, a procurar avaliar e compreender a multiplicidade de facetas que ele apresenta. Todo o discurso estruturado deveria passar por uma etapa indispensável: pensar, por um momento, contra si mesmo. É preciso saber questionar a tese que não defendemos." Para este autor o que está em causa é a recuperação da liberdade de pensar no interior do processo de elaboração do discurso público. Daí que elogie a imprevisibilidade da inteligência que contrapõe ao conforto paralisante daquilo que designa "elementos da linguagem" e que mais não são do que os estereótipos quase impensados que se instalaram num linguajar público. O tema é da maior importância já que o que está em causa é a qualidade do espaço público democrático, com todas as consequências daí resultantes.
Aquilo a que temos vindo a assistir no nosso país neste domínio não nos pode deixar tranquilos. Senão vejamos como as coisas se têm vindo a passar em vários planos discursivos: a análise crítica cede lugar à proclamação da denúncia; a imaginação social e política transforma-se na arte da repetição de litanias muito superficiais; o próprio humor é frequentemente rebaixado à condição de um palrear zombeteiro a raiar os limites da cretinice. Contrariamente ao que vulgarmente se perspectiva é neste tipo de distorções discursivas que o populismo encontra o seu melhor acolhimento. Trata-se, aliás, de uma forma perigosa de populismo, já que escapa às suas formulações tradicionais. Esse outro, mais evidente, acaba por ser sinal de um mal-estar democrático e, como tal, deve ser devidamente tido em conta. Este, menos óbvio, pode ser bem mais letal.
Basta atentarmos na retórica extremista hoje novamente tão utilizada para compreendermos o que poderá estar em causa. No limite, a recusa da complexidade, o enaltecimento sectário de uma identidade, a invocação de receitas mágicas colocam-nos perante o fantasma de uma infantilização geral das nossas sociedades. É óbvio que não tem necessariamente que ser assim mas, infelizmente, há razões pertinentes para temer que possa vir a ser mesmo assim. Olhemos à nossa volta, liguemos a televisão, viajemos pelo mundo da blogosfera, concentremo-nos na leitura dos jornais - salvo raras excepções tudo parece dominado por um espírito do tempo marcado pela prevalência de uma associação assaz confusa entre moralismo ingénuo, exibicionismo opinativo mal fundamentado e sectarismo ideológico naturalmente intolerante. Não é, pois, de estranhar que o sentido do compromisso seja objecto de execração, que a subtileza seja repelida e que a graçola atrevida tome o lugar da sátira exigente e culta.
Tudo isto concorre fortemente para uma debilitação do debate democrático. Falta-lhe aquilo que Bilger considera um elemento imprescindível: a afirmação do primado da liberdade interior no nosso próprio processo de elaboração de uma representação do mundo nas suas múltiplas vertentes. À esquerda e à direita estes novos marialvas do discurso político proclamam certezas, lançam anátemas, estabelecem proscrições, anunciam radiosos caminhos. A popularidade de que parecem usufruir, apesar de tudo largamente sobrestimada, radicará sobretudo num certo desejo de fuga à realidade. Que esse desejo se tenha disseminado com particular intensidade no mundo dos fazedores da opinião pública contemporânea é algo que deve merecer profunda reflexão. Será que, a par da vertigem do consumismo materialista, estaremos a assistir ao surgimento de um fenómeno de consumismo ao nível das ideias com o mesmo significado? Os franceses já há alguns anos criaram o conceito do "prêt-à-penser" por analogia com o "prêt-à-porter".
O que agora comporta alguma novidade é precisamente o carácter excessivamente simplista e sectário desta forma inferior de discurso público.

2. A indicação de Jean-Claude Junker para a Presidência da Comissão Europeia constituiu um importante avanço no projecto europeu e abre novas perspectivas políticas imediatas. Se há projecto que não é compreensível à luz de um modelo interpretativo básico é precisamente o projecto europeu. Não podia, aliás, ser de outra forma dada a diversidade que o integra e estrutura. Essa diversidade só pode ser devidamente gerida se houver abertura para o sentido do compromisso político. Foi isso que aconteceu. Claro que esse compromisso só pode ser devidamente avaliado tendo em consideração a substância em que se alicerça. Ainda que esta não esteja devidamente esclarecida é possível antever um melhor horizonte para os próximos anos. Claro que os novos heróis do marialvismo político se não conformam com a solução encontrada. Para eles tudo é luta, confronto, exaltação e expiação. Uma bela receita para o desastre. Felizmente a realidade ainda vai seguindo por outros caminhos.

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