2014

Passado o imediatismo dos comentários a quente, a Justiça começou mesmo a mudar em 2014.

Em 17 de Maio de 2014 Portugal deixou de ser um país directamente intervencionado. Terminada a aplicação das medidas previstas para três anos, como condição para que Portugal recebesse um empréstimo de 78 mil milhões de euros que evitaram a falência do Estado, pode até existir nalguns sectores uma sensação de alívio, mas a realidade da situação portuguesa continua de desespero.

Os números são conhecidos e nem precisam de comentários. A dívida pública está em 131,6% do PIB. O crescimento da economia deverá ser de 1%, segundo o INE. Isto num país que chegou a 2014 com uma perda de quase 330 mil pessoas para a emigração nos três anos anteriores (128.108 em 2013, 121.418 mil em 2012 e 100 mil em 2011, segundo o INE). E onde o desemprego está em 13,4%, número que não inclui os desempregados que estão fora do sistema, nem os inseridos na rede de estágios profissionais, como, aliás, referenciou o Banco de Portugal. E com um empobrecimento da população que é real e se prevê seja idêntico ou pior do que o retrato feito pela OCDE para o período entre 2007 e 2012, em que houve uma perda de 2,5% de rendimentos em média por ano – ou seja, um quadro que é exemplo claro da actual transformação que se caracteriza por uma espécie de luta de classes invertida.

Com o panorama negro no plano social, económico e financeiro, há algo que parece ter mudado de forma positiva. Façamos o balanço. Dois políticos foram condenados no processo Face Oculta – Armando Vara e José Penedos, ambos a cinco anos de prisão efectiva. Outro político, Duarte Lima, foi condenado a dez anos, por burla agravada. O ex-primeiro-ministro José Sócrates está detido em prisão preventiva, acusado de branqueamento de capitais, fuga ao fisco e corrupção. O mais emblemático banqueiro português, Ricardo Salgado, foi ouvido como arguido no processo Monte Branco, que incide sobre branqueamento de capitais, e sujeito a uma caução de três milhões de euros. Resta esperar o resultado das várias investigações a decorrerem em Portugal e noutros países sobre a sua gestão do Grupo Espírito Santo, que levou à falência do império Espírito Santo.

Não falamos de meros casos de polícia. No fundo e na substância são uma demonstração de que algo mudou na Justiça em Portugal. Neste sector parece ter existido uma reforma que tem dimensões várias, uma das quais passa por uma real mudança de atitude do poder político em relação à Justiça. O exemplo máximo dessa mudança de atitude foi a distância assumida pelo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, face à derrocada do império Espírito Santo. Acresce a isso que existe hoje nas magistraturas e nas polícias uma nova geração mais consciente e ciosa da sua autonomia e da sua função social, em consonância com a exigência de resultados feita pela pressão da opinião pública.

Houve também nesta mudança na Justiça importantes e decisivas medidas concretas levadas a cabo pela ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz. Aqui cabe não só a decisão de propor Joana Marques Vidal para procuradora-geral da República, como também a revisão do Código de Processo Penal e a elaboração de um novo mapa judiciário. Em relação ao processo penal foram introduzidas alterações que trouxeram uma aceleração real dos processos que facilita e agiliza a vida judicial. E mesmo a declaração de inconstitucionalidade dos julgamentos sumários nos casos de flagrante delito e com pena inferior a três anos é uma derrota do pai da ideia: Paulo Portas, líder do CDS e vice-primeiro-ministro.

Já o redesenho do mapa da distribuição territorial e organização dos tribunais portugueses é a primeira reforma deste tipo desde o 25 de Abril. E só má-fé ou ignorância da complexidade de uma reforma com a dimensão desta pode levar alguém a dizer que fracassou, dando como exemplo os atrasos e as dificuldades de implantação que surgiram de início e que podem ainda existir, quer do ponto de vista das instalações e da arrumação do espaço físico das comarcas, quer do ponto de vista da organização dos tribunais especializados. Até porque pôr em prática uma mudança destas não se faz com um passe de mágica.

É certo que o ano da Justiça ficou também marcado pelo bloqueio do sistema informático que gere o processo cível, quando arrancou a reforma do mapa judiciário. O sistema informático não terá aguentado a mudança e foi-se abaixo, levando quase um mês a começar a normalizar o seu funcionamento. Mas o “ruído dos holofotes” da comunicação social à volta do falhanço temporário do sistema informático quase ofuscou a importância da reforma de fundo que é o novo mapa judiciário. Criou-se, na verdade, um clima de histeria pública que as reacções da ministra não ajudaram a dissipar, ao quase perder o pé perante a contestação e a barulheira geral. Agora, o facto é que, passado o imediatismo dos comentários a quente, a Justiça começou mesmo a mudar em 2014.

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