Uma década para as universidades

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Depois da cosmética, Bolonha 2.0 deve ser a década das reformas reais, centradas no conteúdo e na qualidade

Dez anos volvidos sobre a Declaração de Bolonha, os ministros europeus reúnem-se em Budapeste e Viena para abrir o Espaço Europeu do Ensino Superior. Pese embora já comecem a adicionar temas novos ao pacote inicial, os mesmos reconhecem que a última década serviu mais para abrir caminhos para a reforma do sector do que para realmente fechar o Processo de Bolonha. São visíveis os movimentos contraditórios: ninguém duvida que as reformas vieram para ficar, mas também se multiplicam bolsas de descontentamento de docentes e estudantes, manifestando-se ora em oposições surdas, ora em desafio aberto. As manifestações estudantis que grassaram na Europa o ano passado são mesmo reconhecidas pela declaração oficial que será assinada amanhã.

A vitalidade do Processo de Bolonha assentou em dois pilares centrais: a reforma aborda problemas comuns nos países ocidentais (crescentes custos no ensino superior; abandono escolar elevado sem formações relevantes para o mercado de trabalho; desarticulação entre o mercado laboral europeu e as formações universitárias; pouca interacção com o sector empresarial; reduzida mobilidade de estudantes e académicos; perda de vantagem competitiva face aos Estados Unidos e as potências emergentes; etc.); as soluções foram desenhadas através da consensualização e implicação dos parceiros sociais, nomeadamente as universidades e os estudantes. No entanto, a maioria das universidades não acompanhou esse movimento inicial e manteve uma grande reactividade a estas mudanças, alimentando a ilusão de que ele podia ser travado ou ignorado. A obstaculização dos académicos também incluiu o incentivo à reacção estudantil.

De certo modo, isso era inevitável e natural. Mas a resistência passiva autorizou os governos a tomar controlo sobre a implementação das reformas. Quando foram forçadas a adoptá-las, as universidades não tinham os meios para definir os seus termos no contexto nacional e institucional. Os mesmos governos concentraram-se numa corrida aos resultados visíveis, privilegiando adaptações rápidas e formais, criando legislação e operando acções de cosmética de estruturas de graus sem efeitos reais na qualidade das formações. Observadas apenas essas reformas, bons e maus sistemas podem sempre apresentar-se como casos de sucesso nos relatórios que analisam os resultados, mesmo se o essencial fique por fazer ou seja até prejudicado. É isso que explica, por exemplo, que o Governo português tenha tido a veleidade de comparar o "sucesso" português ao sistema finlandês em Maio do ano passado.

Os mesmos governos definem as políticas de acordo com as suas agendas e não em respeito do pacote coerente de reformas consensualizadas ao nível europeu. "Processo de Bolonha", "Estratégia de Lisboa" e "Europa" são meros rótulos instrumentais para legitimar opções nacionais. Por exemplo, a Bolonha "contaminada" pelos parceiros sociais reafirmou os princípios da educação como bem público e de responsabilidade pública, elegeu a dimensão social como prioridade política e centra-se na reforma dos estudos e no aumento da sua qualidade. Contudo, para estudantes, docentes e diversas forças políticas nacionais, "Bolonha" é o rótulo visível de uma parafernália de regras, imposições, burocracias, corte de financiamento, intromissão de empresários e abastardamento de princípios e valores académicos.

As universidades concentraram-se na discussão sobre instrumentos e efeitos das reformas nacionais, numa exagerada vitimização e passividade. Isso resultou afinal no bloqueio e desprestígio das próprias instituições, na suspeição de ordens profissionais e empregadores sobre as suas novas formações e no descontentamento dos estudantes que, entre transições apressadas e mal definidas e o agravamento do tempo de estudo e do investimento em propinas, responsabilizam as suas escolas pelo estado da sua formação. Central teria sido uma apropriação e redefinição útil para as estratégias institucionais desta agenda de renovação do ensino superior que o Processo de Bolonha implica: o fim de uma concepção aristocratizante e elitista do ensino superior; o reconhecimento de competências e qualificações, dessacralizando os ambientes de educação formal como meios únicos de aquisição de conhecimento; o fim de uma educação padronizada e a promoção de formações mais curtas, flexíveis e mais individualizadas; a empregabilidade sustentável como objectivo essencial mas não exclusivo da educação; a aprendizagem ao longo da vida e a abertura a novos públicos; a internacionalização das universidades e a mobilidade estudantil como experiência indispensável e a valorização das formações; a integração entre ensino e investigação; a centralidade das questões da qualidade e a comparação com outras instituições; a reforma da condição docente e o cultivo da autonomização estudantil; a criação e reforço dos sistemas de apoio aos estudantes como condição para a dedicação e excelência académica.

A promessa de mais 10 anos de reformas que os ministros fazem esta semana em Viena é por isso uma renovada oportunidade para as universidades se apropriarem deste quadro de reformas, mas definindo a sua própria estratégia, o seu perfil e as suas prioridades. Uma empresa deste tipo requer lideranças inspiradas e um tecido académico comprometido com um projecto de mudança e melhoria. Esta fase de maturação é o tempo para a formação dessas coligações de forças de progresso e renovação (que inclui académicos, estudantes, parceiros sociais e parceiros externos), uma tarefa difícil mas essencial para a sustentabilidade de um processo urgente de transformação. Depois de uma década da cosmética e das formalidades dos governos, Bolonha 2.0 deve ser a década das reformas reais, centradas no conteúdo e na qualidade. A década das universidades. Doutorando em Ciência Política

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